sábado, 10 de abril de 2010

ERA ASSIM

Raphael Montechiari

Você estava sentada na cerca, com os pés apoiados na ripa de baixo. Suas pernas eram bem brancas e bem torneadas. Você estava com um chinelinho preto ou com uma sandália de tiras. Sei que a cor era preta. Não me lembro se estava de meias. Acho que havia um pouco de mato tapando os pés. A ponta do matinho, bem fininho, com algumas flores, chegava até seus pés. E o vento balançava as flores e os matinhos para o leste. É o vento das cinco da tarde. Sempre sopra para o leste.

Lembro que você estava com uma bermuda de tecido mole, com um ou dois bolsos. Não dava pra ver muito bem o lado. Sei que era xadrez e tinha duas alças que iam até os ombros. Uma camisa rosa com algo escrito. A cerca estava com a tinta branca bem descascada e parecia ser de um curral, apesar de não ter nenhum boi ou vaca atrás de você. Tinha dois passarinhos se bicando, brincando e cantando no chão, à sua esquerda. E você olhava pra eles sorrindo. Um sorriso bem puro e divertido. Tanto que dava pra ver um pouco dos dentes brancos aparecendo entre seus lábios. Um sorriso verdadeiro! Os olhos quase fechados e covinhas nas bochechas. O cabelo estava amarrado, com um rabo de cavalo escondido atrás da cabeça.

Suas mãos estavam apoiadas na cerca com os polegares voltados para frente e os outros dedos escondidos atrás da ripa da cerca. Os ombros um pouco levantados por conta dos braços longos. E o sorriso puro e divertido. O vento das cinco também balançava as pontas do seu cabelo e levava algumas folhas secas de árvores. No fundo, bem no fundo mesmo, havia duas montanhas claras e com pequenas árvores nos cumes e um céu azul entre elas. Uma poeirinha de nuvens aparecia perto da montanha da esquerda mas todo o resto era bem azul.

Você? Sorria olhando os passarinhos brincando. Passarinhos azuis com a barriga branca e bicos alaranjados. E seus pés, apoiados nas ripas, pareciam balançar em um ritmo constante. Eu juraria que você esteve ali sua vida inteira e a vida inteira com aquele sorriso puro e divertido. E verdadeiro! Olhando para os passarinhos, sentada naquela cerca branca com os olhos quase fechados. Assim que eu te desenhei.

sábado, 3 de abril de 2010

UM DIA

Raphael Montechiari

Um dia eu acordei. Notei que tudo estava diferente. Borrado, como num quadro de Munch. Mas tudo real a espera do contato de minhas mãos.

Ao prestar mais atenção notei que estava sob uma árvore e via os borrões verdes das folhas ligados por traços retos, como se tivessem sido feitos com dedos molhados numa tinta marrom. Ao fundo, se descolou da árvore um azul claro sem fim com um brilho chegando pelo cantinho esquerdo. Tudo ainda borrado. Mas ao fixar o olhar eu começava a ir definindo algumas coisas.

Levantei-me e pude ver um sol sorrindo para mim, com dois olhos semi-fechados ou semi-abertos. Os raios de sol estavam espetados em toda sua cabeça redonda e pude notar uma covinha se formando nas pontas do sorriso. Meus olhos se ofuscaram como se ofuscam os olhos de quem olha para o sol. Ao mudar a direção do meu olhar vi um barquinho bem ao fundo. Ele era azul e tinha uma janelinha de vidro redonda, com uma bandeirinha vermelha logo acima do convés. Ele navegava num azul escuro, brilhoso e cheio de ondas e um peixe amarelo saltava em intervalos de tempo regulares ao seu lado. E passavam pássaros. Eles olhavam para mim sorrindo e dando adeus e então seguiam seu caminho formando vários tracinhos pretos no sol.

Agora a árvore oferecia uma maçã vermelha, meio mal pintada, entre suas folhagens. Consegui esticar minha mão para pegá-la e notei que tinha uma mão bem borrada também. Admirei a linda maçã vermelha, entre meus dedos rosados e notei que saia dela uma pequena lagartinha, que me disse: “Se for pra te ver sorrir, cedo a maçã e minha vidinha inútil.” Eu mordi a maçã - e a lagartinha - e senti um gosto maravilhoso de chocolate com mel e uma pontinha de anil. Assim que terminei de comer meu pêssego maduro e mal-pintado, olhei outra vez para o alto do morro onde estava a casinha azul, de janelinha quadrada e com a chaminé vermelha logo acima do telhado. Ela havia sido construída sobre uma relva verdinha e com pontas irregulares, como dentes afiados. E os dentes eram de serra e começaram a andar e cortar o tronco da árvore, que aos poucos gemia e pedia por ajuda. Mas os pássaros pareciam sorrir ainda e o sol sorria de volta para eles.

O vento carregava uma pipa bem amarela com uma cruz azul em seu dorso. E a rabiola vermelha acenava para mim e para a lagartinha que saía por entre meus dentes. Ela tinha um estranho sabor marrom e meus dentes davam passagem para ela. Enquanto me distraía com os pássaros sorrindo para o sorriso que criei ao tentar retirá-la com vida, o sol foi se encaminhando para o mar e chegou a chamuscar o cantinho do barco.

A lua exibia uma cara pensativa e não podia esconder algumas marcas de espinhas nas bochechas. Ela havia acabado de sair do mar e ainda escorria um pouco d’água. Algo borrou sua cor amarelo-clara. Era uma fumaça cinza, que saía da chaminé da casinha azul com janela quadrada que, logo em seguida, sumiu para dar lugar a outra e a outra e a outra, até me fazerem entender que se tratava de um trem. E seu apito zunia nos meus ouvidos que, por sorte, estavam com pequenas lagartinhas protegendo os tímpanos. Elas tinham abandonado a árvore, que ainda era borrada. Não tinha mais sua maçã e nem seu gato preso que eu havia resgatado. Também estava sem o buraco no tronco que havia sido pintado por uma menininha rosa feita de pano.

O trem, andando pelas montanhas, entrou pela boca da lua, que era como um túnel e, subitamente, furou a tela da pintura, vindo de encontro a mim. Só podia ver a luz do trem e ouvir seu assovio. Eu tentava correr, mas meus pés não me obedeciam. Quando já podia sentir o choque dele contra meus ossos senti o chão caindo e a árvore, a casa, o barquinho, a lua e o céu ficando para baixo. Notei que estava voando e a sensação era fantástica! Fazia um movimento para frente e logo estava flutuando por sobre um deserto azul, só iluminado pela luz da lua. Aproximei-me de uma cordilheira, com cumes cheios de neve, e já conseguia ver algumas árvores e um rio cortando as montanhas ao meio. E era tudo tão iluminado pela lua que eu podia ver as corujas, lá embaixo sorrindo para mim. E voava como nunca havia voado antes!

Um dia eu acordei.

sábado, 27 de março de 2010

A ÚLTIMA CEIA

Raphael Montechiari


- Acorda, dorminhoco! Anda! Vem que o almoço está pronto.

Ela abriu as cortinas e ligou o rádio.

- Vem logo senão vai esfriar.

Me senti um pouco perdido. Demorei alguns minutos para me situar. Depois senti uma forte dor de cabeça me dominando. Fiquei por mais um tempo tentando me recompor para conseguir levantar.

- Já está todo mundo na mesa, só esperando por você para almoçar – disse minha irmã ao passar pela porta do meu quarto.

Me veio à mente alguns momentos da noite anterior. Eu havia saído com meus amigos para o baile da cidade, mas não tinha a mínima idéia de como eu havia voltado.Isso me trouxe uma angústia. Mesmo forçando a mente, não me lembrava de nada.

Fui ao banheiro, escovei os dentes e cheguei na cozinha. Todos me olharam rapidamente e continuaram a conversa enquanto terminavam o almoço.

- Te esperamos muito tempo. Agora vai comer sozinho – disse meu pai com a boca cheia de comida e com os olhos cheios de raiva.

Não sentia nenhuma vontade de comer e nem o bacalhau com batatas, que eu tanto gostava, me apetecia. Mas precisava comer pois eles não poderiam sequer suspeitar que eu havia bebido na noite anterior. Assim, arrumei meu prato e fui beliscando aos poucos. Enquanto isso minha mãe lavava os pratos e arrumava a cozinha, como era de costume. Ela falava sobre como a louça estava velha e que estava desde cedo polindo os móveis. Falou de muita coisa, mas minha mente resolveu liberar mais algumas informações sobre a noite anterior.

Me lembrava de como eu havia bebido e de uma mulher me batendo porque eu tinha feito algo que eu não sabia agora o que era. Em minha mente, vi que ela chorava e meus amigos riam. E eu também ria. Me lembro também de ter cheirado uma ou duas carreiras de pó e bebido mais vodka. A garota aparecia chorando de novo e meus amigos rindo. E agora me vem uma cena bem recorrente naquela noite. Um vaso cheio de vômito e um cheiro forte de urina. Eu sentia meus joelhos molhados, encharcados. E depois de novo, só que um outro vaso. E uma terceira vez.

- Você viu?
- Que foi, minha mãe?
- Quando acabou a eleição, a confusão que deu na rua?
- Vi sim. Isso foi em outubro.
- Mas foi um desaforo!

Ela voltou a contar casos e eu a reviver fatos. Eu via pés passando e gotas de lama vindo em minha direção. A grama estava espetando meu rosto e sentia arder os meus olhos. Em seguida me lembrava de outra cena. Alguém ajoelhado olhando para cima. Parecia estar me suplicando. Seu rosto ensangüentado e meus amigos olhando para mim e dando pontapés em sua costela. Sei que era um garoto. De uns dezesseis anos. Negro, magrinho e ensangüentado. Não havia mais ninguém por perto. Agora me lembro dele. Ele vendia picolé na rua e gritava bem alto: “Olha o picolé!” e sorria olhando alguém que o chamava. Suas sandálias gastas e seu short vermelho com três listras brancas do lado. Uma camiseta branca, com algum nome e número de um político qualquer, estampado atrás. Um picolé vendido era uns centavos a mais que ele conseguia para comprar algo de comer. Por isso o sorriso. E agora o que ele estava fazendo ajoelhado na minha frente? Seus dentes que antes sorriam agora sangravam. E meus amigos o chutavam.

- Quero ver se ele soubesse o trabalho que dá.
- De quê, mãe?
- De que? De lavar a toalha de mesa toda vez que ele come. Daqui a uns tempos vou mandar comer fora de casa porque não tem educação.
- Quem?
- Seu pai, menino. De quem você acha que estou falando? Sua irmã está lavando sua roupa de cama, aproveitando que teria mesmo que lavar a toalha de mesa.

Olhei minha irmã lavando um lençol encardido de lama e sangue. A roupa que eu havia saído ontem estava estendida no varal. Ela sempre fazia isso. Antes que meus pais descobrissem o que eu havia feito de errado ela chegava e limpava todas as pistas. Depois vinha brigar comigo. Mas eu estava tentando me lembrar que fim havia tido o garoto. Ele era amigo ou namorado da menina que estava chorando, no início de minhas lembranças?

Sim. Posso vê-lo, ao retornar à cena, quando a via chorando e meus amigos rindo. Ele estava chegando por trás de um deles e o acertava com um soco. Estava sozinho. E nós o levamos para a beira da estrada e o surramos. Até que ele estava ajoelhado pedindo perdão. E meus amigos davam pontapés. E minha mãe falava comigo. E eu não a ouvia. Só tentava me lembrar.

- Por favor, me deixe ir embora.
- Agora vai morrer, seu negro filho da puta.
- Vai, acerta logo na cabeça dele.
- O que tenho que fazer mesmo, quando a pia fica entupida?
- Joga soda cáustica.
- Acerta logo. Ele que te fudeu com a mulher.
- Ela é minha irmã.
- Chame sua irmã pra me ajudar. E termine logo com o almoço que eu quero lavar seu prato e ir dormir um pouco. Estou muito cansada.
- Ela era sua irmã.
Eu o acertei com um porrete, que um de meus amigos sempre levava no carro. Eu estava drogado, bêbado, amaldiçoado. Acertei bem na cabeça dele.
- Olha o picolé!
- Joga o corpo no rio.
- Agora tem que deixar até a soda queimar o lixo que entrou pelos canos. Já te disse pra não tirar o ralo, mamãe.
- Mas demora muito, menina.
- Vamos embora.
Eu caído.
Algum desconhecido me levando para casa.
- Quando terminar lave o prato, que já te esperei demais.
- Tá.

Era o máximo que eu conseguia falar. Meus olhos estavam cheios d’água e um nó na garganta me maltratava. Fiquei ali, por alguns minutos, enquanto a água descia. Me levantei, lavei meu prato e fui até o quarto me vestir, antes que minha irmã terminasse de lavar a roupa e viesse me questionar. Depois fui até o quarto dos meus pais, olhei-os e fechei a porta com cuidado. Minha irmã agora estava estendendo as últimas peças de roupa no varal e não tive coragem de encará-la. Saí pela porta da frente depois de deixar um bilhete: “Fui até a delegacia. Não me esperem para jantar.”

sábado, 20 de março de 2010

QUANDO SERÁ

Raphael Montechiari

Estive lendo a respeito dos motivos que levam as pessoas a enlouquecerem. Estava no trabalho lendo e passei a prestar atenção na minha vida. Vários desses fatores que levam as pessoas a surtarem são frequentes em minha vida. Será que estou a caminho de ficar louco? Será que a qualquer momento vou ser levado para um hospício? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez.

A qualquer momento eu posso começar a gritar e não parar mais. Como o Orlando Divino, aqui do escritório. Ele trabalha bem do meu lado e um dia, do nada, começou a gritar. Todo mundo se assustou e veio correndo ver o que havia acontecido. Eu quase morri do coração. Só que não foi um grito simples. O grito durava por muito tempo. Era um “aaaaaaaahh” até acabar o ar de seus pulmões. Em seguida ele respirava fundo e voltava a gritar. Eu tentei acalmá-lo e todos perguntavam o que havia acontecido. Em sua mesa alguns papéis que nada tinham de relevante. Somente documentos comuns, do dia-a-dia. Mas ele não parava e logo todo o setor estava em volta de sua mesa. Ele olhava arregalando os olhos para o nada e gritava. Sua sobrancelha ficava arquejada e o cavanhaque contornava a boca numa forma oval. Ele parecia não parar nunca. Até que chegaram os médicos e deram um tranquilizante para ele. Enquanto ele não desmaiou não parou de gritar. Ele ainda dá uns gritos, de vez em quando, mas não trabalha mais lá no escritório.

Os médicos disseram que o trabalho de Orlando Divino era estressante e que o chefe, o Senhor Morales Gouveia, havia o pressionado depois de uma baixa nas vendas, Ainda soubemos que sua mulher sumia durante o horário de trabalho dele e seus amigos já o haviam alertado que a viam, constantemente, num bar do centro, com um homem alto e careca. Ela negava e ele preferia acreditar nela. Pelo menos queria acreditar. Tudo isso fez Orlando Divino começar a gritar e não parar nunca mais.

Analisando a situação eu percebi que sou forte candidato a surtar. Faço o mesmo trabalho que ele, e o Senhor Morales Gouveia vive me pressionando, mesmo quando as vendas estão altas. Minha esposa não some às tardes, mas me diz diariamente que vai me largar por causa da bebida. Bebo muito nos fins-de-semana e fico mal humorado. Chego em casa xingando ela e dizendo umas verdades. Quando a gente bebe não há segredo que resista! Digo que ela está gorda e que o cabelo dela parece uma vassoura. Ela me responde que a culpa é do marido pobre que ela casou. Não tem dinheiro nem para pagar um cabeleireiro bom e nem uma academia. Ela tem até razão, mas eu também tenho. Além disso, estou cheio de dívidas e já ameaçaram nos colocar no olho da rua.

Acho que tenho mais problemas que o Orlando Divino e, então, tenho sérias chances de ficar louco.

A miga da minha mulher tem me provocado constantemente e o Carlitos Galvão sempre me diz para dar uns pegas nela. Ela é gostosa e muito safada. Dá de dez a zero na minha esposa. Acho que o Carlitos tem razão. Vou tirar uma tarde dessas para comer essa mulher. Será que assim eu fico com menos chances de ficar louco? Pode ser que sim, poder que não, pode ser que talvez.

Carlitos Galvão também já me falou para eu dar umas porradas na minha mulher. Disse que mulher feia é feita pra tomar porrada. E também já me disse para eu quebrar meu chefe, o senhor Morales Gouveia. Ele é autoritário e gosta de me humilhar na frente de todos. Me chama de incompetente diariamente e diz que eu não duro muito tempo na firma. Carlitos me disse que ele não só merece tomar muita porrada na cara mas merece morrer. Ter uma morte dolorida pra pagar tudo que ele faz a mim. E me disse que se eu não fizer isso vou ficar louco. A qualquer momento posso surtar e quebrar tudo. Ou ficar gritando “ ahhhhh” como o Orlando Divino. Ou talvez ficar vendo pessoas que não existem, como o meu tio Alécio Bitico. Ele conversava com uma mulher que só ele via e se apaixonou por ela. Ela mandou ele se jogar na frente de um caminhão pois só assim poderia tê-la para sempre. Várias vezes ele resistiu mas um dia ela conseguiu convencê-lo. Coitado do meu tio.

Eu não quero ficar louco. Mas estou vendo que não vou ter outro fim. Tudo indica que estou a dois passos de surtar. Será que tenho alguma chance? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Preciso me controlar. Tenho conversado muito com Carlitos Galvão sobre essas coisas. Ele é o faxineiro aqui do escritório. Mas é tão sábio que poderia ser o chefe. Sempre que vou ao banheiro ele está lá, limpando as privadas. Quando eu chego ele para tudo para conversarmos. Ficamos lá, por muito tempo conversando. E ele fala sobre tudo. Futebol, mulheres, filosofia, filmes. Principalmente filmes de morte. Ele adora me ensinar sobre como matar alguém. Mas ele nunca matou, só me ensina. Pensando bem, será que o Carlitos Galvão é uma alucinação? Será que já estou louco e conversando com um ser que é da minha imaginação, como o meu tio Alécio Bitico? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Preciso saber se mais alguém o conhece. Tenho falado sozinho ultimamente e pela minha cabeça passa um turbilhão de pensamentos. Uma hora tinha que dar problema. Carlitos. Vou ver com o Lúcio Mendes.

- Mendes, você conhece o Carlitos Galvão? O faxineiro?
- Claro. Quem não conhece o Carlitos Galvão?
- Ahn. Só pra saber.

Se o Lúcio o conhece então ele existe. Isso prova que ainda não estou louco. Mas sei que vou ficar. Estou com todos os sintomas. Acho que devo procurar um psicólogo. Se bem que o Lúcio Mendes já estudou psicologia. Às vezes converso com ele e me dá ótimos conselhos. Ele que me disse que a bebida era um remédio para essa vida chata. Eu não bebia nem vinho. Então saimos um dia do trabalho e tomei uma dose de conhaque. Minha vida se transformou! Tudo ficou melhor. Fiquei mais animado, falante e minha timidez foi para o espaço. Tá certo que um tempo depois passei a brigar com minha mulher, mas no início ela até ficava mais bonita e atraente. Agora eu vejo um monte de mulher gostosa na rua e chego em casa e me deparo com aquele dragão. Isso me revolta! Porque, com tanta mulher no mundo, eu escolhi logo aquela baranga? Aí me dá vontade de voltar e beber de novo, mas não tenho dinheiro. Agora, pensando aqui, quem sabe minha mulher também não é uma alucinação? Não. Me lembro do nosso casamento e da noite de núpcias muito bem. Naquela época ela era mais arrumadinha. Mas bem que podia ser imaginação minha. Se bem que se fosse imaginação, a amiga dela também seria e eu não teria uma gostosa daquela para me curar. Hoje mesmo vou procurá-la.

- Mendes.
- Que foi?
- Você conhece a Edinéia, minha esposa?
- Sim, claro. Quem não conhece aquela baranga? Hahahaha.
- É Ela é bem feia.

Ela existe e é baranga. Ainda não fiquei louco mas estou caminhando a passos largos para ficar.

- Agora, pensando mais um pouquinho aqui, e se o Lúcio Mendes for imaginação também? Ele pode estar dizendo que os outros existem, mas todos estão na minha cabeça e se juntam para provar suas existências. Mas a quem vou perguntar? E se todos forem da minha imaginação? E se eu estiver louco, em um hospício, imaginando tudo isso? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Acho melhor para de pensar nessa coisas e continuar vivendo minha vidinha. Porque se não estou louco, com certeza vou ficar.

sábado, 13 de março de 2010

UMA MÃE


Raphael Montechiari

            Ainda não era a hora do remédio. Faltavam quinze minutos. Mas lá estava ela em busca dos meninos para dar o remédio. O mais novo já estava dormindo e estava perfumadinho em seu berço. Era muito amor que ela tinha pelos filhos! Andou pela vizinhança perguntando pelos garotos e os achou em cima de uma goiabeira. O mais velho segurava o outro pelas pernas para não cair, pois já estava na pontinha de um galho para pegar uma linda goiaba.

            - Vocês estão ficando doidos? Desçam daí agora!

            A voz soava como uma linda melodia que os encantava e eles imediatamente paravam o que estavam fazendo para obedecê-la. Sempre tinha sido assim. Todos elogiavam seus filhos.

            - Como são obedientes! – dizia a vizinha do sobrado ao lado.

            Mas eles não sabiam que era a voz dela que os encantava. E não havia como alguém que tivesse nascido daquele ser amoroso não obedecer. Mesmo que para os outros soasse como ordem para eles era uma cantiga. Uma doce cantiga.

            - Vai cuidar do neném.

            - Já estou indo, mamãe.

            Era imediato.

            Mas com o tempo os ouvidos foram se entupindo para a voz. Não que ela não cuidasse e não lavasse um por um, com cotonetes e álcool. Assim como na época de piolhos, que ela os perseguia para a limpeza do couro cabeludo. Nessa época eles já não ouviam tão bem. Era preciso um pouco mais de energia.

            - Vai estudar para a prova que horas hoje?

            - Depois do futebol.

            - Nada disso. O futebol termina tarde e você não pode dormir de madrugada. Vai estudar antes e, se der tempo, assiste ao jogo.

            - Ah não.

            - Está dito e não tem o que discutir. E se não atender vai apanhar.

            A voz melodiosa agora chegava com um pouco mais de esforço e era preciso insistir um pouco para que fosse atendida. E foi só piorando com o tempo. Até que eles resolveram partir para a cidade grande. Foram estudar e não havia o que ela pudesse fazer. Ela sabia que era isso que seria melhor para eles e, mesmo que sofresse, seria o melhor. Ela sofreria mais se, no futuro, eles estivessem ao seu lado e não tivessem condições de se sustentar. Era melhor eles longe e realizados, felizes e saudáveis do que ao seu lado frustrados, tristes e passando necessidade. Então ela incentivou, ajudou e soube que mais nada poderia fazer. As palavras que haviam entrado quando eles ainda a ouviam já haviam sido suficiente para que eles vivessem da melhor maneira possível. E foi com essas palavras que eles tiveram força para enfrentar a vida que agora se apresentava a eles.

            Os mais sábios diziam que os anjos se alimentavam do amor dos humanos. E o amor daquela mulher para seus filhos era tão grande que agora, com eles longe, estava transbordando e anjos faziam fila para se alimentar. Em troca eles, depois de alimentados, cuidavam de seus filhos. Não havia sequer possibilidade de alguém, com má intenção, se aproximar daqueles jovens. Eles estavam sempre atentos e em cada esquina um se colocava para vigiar o caminho deles. O bandido que se preparava para assaltar um, certa vez, apanhou tanto, que resolveu tomar jeito na vida e começou a trabalhar. Em outra situação, um carro que vinha desgovernado em direção ao outro rapaz, simplesmente voou quando se aproximava dele e caiu a quilômetros dali. A vaga para a bolsa de estudos havia sido conseguida com méritos dos estudos do mais novo, mas o jornal com a notícia de que seriam abertas novas vagas, apareceu misteriosamente em sua mesa. Tudo alimentado pelo amor dela para com eles.

            - Sabe, anjo, não que isso faça diferença, mas apesar de eu amá-los tanto não parece ser recíproco.

            - E nunca será. As mães possuem uma glândula produtora desse sentimento que é vinte vezes maior que em qualquer outro humano. Elas têm isso exatamente para que eles possam ter uma chance maior de sobrevivência. A deles é muito menor. Mas ainda assim te alimenta.

            - Como assim me alimenta?

            - O nosso amor-próprio só nos dá dois por cento de sustento. Os outros noventa e oito por cento são nos dado por outros. Pelo seu marido, pelos seus filhos e por todos que te amam. A maior parte do amor que você produz é para o próximo. Então se você se sente forte não pense que é pelo amor seu que sobeja mais sim pelo amor que vem de outros. É por isso que sempre que eles a visitam você se sente reabastecida. Por mais que eles não pareçam te amar é deles que vem a força para você continuar. É amor que eles retribuem. E saiba que eu conheço alguns anjos que se alimentam do amor deles e cuidam de você também.

            - É?

            - Sim. É.

            Ela sorriu.

sábado, 6 de março de 2010

AO CÉU

Raphael Montechiari

Todo dia gastava horas e horas olhando para o céu. O céu azul, lá em cima, às vezes com algumas nuvens dependuradas. Sempre quis saber de que era feito. Madeira, ferro ou porcelana? A tinta azul clara era pintada depois que a superfície havia sido bem polida, independente do material. E como as nuvens ficavam por ali? Agora eu tinha descoberto uma maneira de descobrir tudo isso. Tinha me decidido ir até o céu após ter notado que a montanha mais alta da cidade, a montanha de Lombardo, chegava até ele. Alguns dias as nuvens não eram fortes o suficiente para evitar que a montanha o furasse. Então elas ficavam por ali, cercando o furo para que quem estivesse embaixo não percebesse o acontecido. Mas eu havia percebido e iria tocar o céu e ainda ver o que tinha depois da casca azul.

Já havia criado algumas explicações e a que era mais lógica era a que durante o dia, para o sol poder clarear a Terra, a casca azul era baixada e fechava a escuridão do céu. Isso porque as estrelas sozinhas não davam conta de clarear. À noite, a casca azul era retirada e deixava a escuridão entrar para podermos dormir em paz. Agora era só confirmar se isso era ou não era verdade.
Peguei minha bolsa de couro, coloquei nela um cantil com água, um pedaço de carne de sol que estava esticada na mesa do quintal e duas ou três bananas maduras. Ainda peguei meu canivete, meu caderninho de anotações e uma pequena corda para o caso de alguma travessia arriscada. Vou tocar o céu e se for mesmo uma casca azul, trago um pedaço pra provar a quem duvidar. Além disso, vou escrever meu nome no céu com o meu canivete, como eu faço nas árvores do parque. Quem for tocar o céu verá que eu já estive lá antes. Vou colocar a data também para quando eu crescer mais e for lá de novo, me lembrar de como eu, com apenas doze anos, já era esperto.
Ao ver que eu me encaminhava para a trilha da montanha, um senhor de óculos veio ao meu encontro e me perguntou:

- Olá jovem. Para onde vais? Sabe que esse caminho leva à montanha de Lombardo?
- Sim. Por isso estou seguindo por ele.
- E o que vai fazer lá?
- Vou para o céu? Quero tocá-lo.
- Mas você acha que vai ser tão simples assim?
- E por que não?
- Você soube de alguém que foi lá e conseguiu tocá-lo?
- Não. Perguntei aos meus pais e eles não souberam me dizer de que era feito o céu e nem conheciam ninguém que soubesse. Meu pai acha que é de porcelana e minha mãe jura que é de ferro.Polido.
- Todos especulam mas ninguém sabe ao certo como chegar até lá. Mas eu sei.
- Sabe?
- Sim.Tenho um livro que encontrei ha muito tempo atrás que ensina como chegar até o céu e foi escrito por alguém que já esteve lá.
- E a casca azul é feita de quê?
- Ele não diz.Mas diz como se faz para chegar.
- Mas isso eu já sei. É só ir para o alto da Montanha de Lombardo. Todo mundo sabe disso. Ela está encostando no céu e às vezes até o fura.
- Mas por mais que pareça simples não é.
- Não é só ir subindo a montanha?
- É. Mas você pode ficar aqui e esperar o homem que escreveu o livro.Ele vai nos contar como é o céu e de que ele é feito. E depois irá nos levar para tocar nele.
- Mas eu prefiro ir agora. E se ele não vier?
- Ele virá.
- Eu prefiro ir de uma vez.
- Então não vá pela estrada principal.
- Não?Por quê?
- Porque o jeito mais fácil é cheio de armadilhas e confusões e você pode se perder para sempre ou então cair no Vale do Rio Negro.
- E que vale é esse?
- É onde todos que sobem a montanha e se perdem, acabam indo e nunca mais voltam.
- Mas se eles nunca mais voltaram como sabe que foram para lá?
- Simples. Está escrito no livro que encontrei.
- E qual seria o caminho certo?
- Está vendo a trilha principal?
- Sim.
- Olhe um pouco mais à frente e verás, entre duas árvores um caminho muito estreito e cheio de mato.
- Sim estou vendo.
- É só seguir por ele. Assim você chegará. É muito mais cansativo. Tem pedras escorregadias e espinhos. Mas ainda assim é o melhor caminho.
- Muito obrigado. Eu irei por ele.
- Disponha.
- Quando eu voltar passo aqui para te dar um pedaço do céu.
- Não é preciso. Em breve eu irei para lá também.
- Então está bem. Nos vemos lá.

Durante a subida fui passando por um pequena trilha e, sempre que podia, olhava para cima para ver o quão próximo eu já estava. Peguei meu caderninho de anotações e nele coloquei uma dúvida que havia me visitado naquele instante. Se o céu é o azul que vemos durante o dia e o preto cheio de estrelas que vemos durante a noite, e a terra é a parte que pisamos, como se chama o espaço intermediário entre eles? Anotei a pergunta e em cima da anotação coloquei “pesquisar” e circulei. Fechei o caderno e tomei um gole da água. Esse caderno era onde eu anotava todas as dúvidas que me vinham à mente. Depois tentava achar as respostas. Primeiro perguntava aos meus pais. Quando eles não me davam uma resposta satisfatória eu levava a dúvida ao meu professor. Só que ele não gostava muito quando o perguntava e frequentemente brigava comigo. Dizia que eu estava desviando o assunto da aula. Mas o assunto da aula não me interessava tanto quanto essas coisas mais simples. Ele falava de coisas muito distantes e eu queria saber o que estava acontecendo ao meu redor. Quando ninguém me respondia eu mesmo pensava e criava as respostas ou então fazia uma expedição para descobrir. E essa seria mais uma.

Segui meu caminho e me perdi de novo entre meus pensamentos. Por quê será que tudo tem que ser do jeito mais difícil? Talvez para separar os corajosos dos covardes. Os fortes dos fracos. Mas assim como a terra e o mar, o céu deveria ser para todos. Um azul tão bonito assim não pode ser só para ver. O mar também é bonito de se ver,mas também é muito bom tomar banho nele! Os rios e cachoeiras também. E as árvores e flores?Tão bonitas para se ver, mas podemos pegar frutas nas árvores e cheirar as flores. O que o céu pode ter além da beleza?

Logo na entrada do caminho estreito me arranhei com um espinho e um pouco mais a frente me arranhei outra vez.O mato estava muito alto e em determinadas partes não dava pra seguir o caminho. Os mosquitos também começavam a me picar. Mas sei que quanto mais se sofre para conseguir algo melhor é a recompensa. Quase sempre é assim. Quando eu quis comprar minha bicicleta tive que vender durante muito tempo os doces que minha mãe fazia. Debaixo de sol e chuva eu ia para a porta da igreja e para a praça da cidade vendê-los. Demorei muito tempo para juntar o dinheiro, mas quando comprei a bicicleta foi o melhor dia da minha vida. Eu andei por todas as ruas da cidade, sem faltar nenhuma. E depois voltei no sentido contrário de todas elas, sem faltar nenhuma. Como é bom se ter uma bicicleta! É por isso que eu continuo vendendo doces para poder comprar um dia uma cama macia. Soube que têm camas muito bonitas na cidade vizinha que dá pra eu comprar se eu juntar meu dinheiro. Acho que vai ser o melhor sono da minha vida.
Cheguei a um lugar onde as árvores e matos me deixavam ver novamente o céu. O sol queimava minha pele. Já havia subido um bocado, mas o céu não parecia ter se aproximado um centímetro. Continuava na mesma distância. Talvez eu só iria perceber quando estivesse bem perto. Consegui ver um pedaço da minha vila e essa sim, estava bem distante.Uma insegurança me bateu. Eu segui.

Um pouco mais acima encontrei um casal descendo pela trilha. Assim que me viram, cumprimentaram e paramos para conversar um pouco.
- Olá menino.
- Olá casal. Conseguiram tocar o céu?
- Não fomos tocá-lo. Só queríamos chegar perto de Deus.
- E Deus mora no céu?
- Sim. Depois do azul.
- E como sabem?
- Todos sabem disso.
- Mas alguém sabe de quê é feito o céu?
- De alguma coisa forte. Porque Deus mora lá em cima. São Pedro também.
- Entendi. Por que queriam chegar perto de Deusÿ?Ele não nos ouve se estivermos aqui embaixo?
- Sim. Mas tem muita gente pedindo coisas para ele. O tempo todo. Resolvemos subir. Ele não estava nos ouvindo. Com esse monte de gente falando com ele, todo mundo junto, ninguém consegue mesmo ouvir nada. E como nosso pedido era muito importante e não tínhamos mais tempo, resolvemos subir.
- E conseguiram?
- Chegamos bem perto do céu. Não tinha mais ninguém lá na montanha para fazer pedidos. Então ficamos por duas horas falando, gritando e pulando. Tenho certeza que ele nos viu e por isso vai nos atender.
- E o que foi que vocês pediram?
- É a nossa filhinha. Ela está com três anos de idade e está com uma doença muito grave. Ela vai morrer e o médico da cidade disse que só um milagre poderia curá-la.
- E vocês foram atendidos?
- Tenho certeza que sim. Deus é muito bom e vai nos atender. Não estamos pedindo mesquinharias e nem nada de mal. Só que ele deixe nossa filha com saúde.
- E se ele não responder?
- Ele vai curá-la. Estamos indo para lá e já estamos programando um almoço com os tios e os avós para comemorar. Vou ver se faço um galo assado com batatas.
- Bom, preciso continuar minha subida. Espero que dê tudo certo.
Eles já desciam, ansiosos e gritaram.
- Boa subida para você.
E desceram cantando uma canção, com uma melodia alegre e belíssima. E cantavam em terças perfeitas, como se tivessem ensaiado a vida toda. A letra dizia algo sobre transpor mares e montanhas em nome do amor. A voz do casal foi sumindo e dando lugar ao canto dos pássaros e o som dos ventos nos galhos das árvores. Uma queda d’água ao fundo completava a harmonia daquele momento. Eu não quis desapontá-los, mas quando saí, minha mãe estava no funeral de uma criança que havia acabado de morrer. Seus pais tinham ido tentar conseguir a cura para a menina e tenho certeza que era esse casal.
Mais pra cima encontrei um senhor de chapéu descendo a montanha. Ele parecia desapontado e caminhava com dificuldade. Quando me viu pareceu espantado, mas acenou para mim com as sobrancelhas. A pele dele era vermelha, queimada pelo sol.
- Olá, senhor de chapéu. Conseguiu tocar o céu?
- Não. Não foi pra isso que subi a montanha de Lombardo.
- Não?E mais pra quê serve essa montanha?
- Achei que serviria para eu me tornar o maior de todos.
- Mas pra quê?
- Menino, durante toda minha vida eu sempre fiz de tudo para crescer na vida e ser o maior e o melhor de todos. Nasci numa família muito pobre e nunca me contentei com isso. Assim que me tornei um rapazinho fui trabalhar na venda do senhor Casimiro Torres. Trabalhei duro durante muito tempo e fiz de tudo para tomar o lugar dele. Nessas horas, jovem, vale tudo! Roubar, mentir e armar contra tudo e todos.O fim justifica os meios.
- E conseguiu?
- Sim. Me tornei o dono da venda em dois anos. Mas eu tinha muita gente que ainda era maior que eu. Comecei a trabalhar para tomar a fábrica de tecido que abastecia a venda. Roubei, menti e armei contra tudo e todos.
- E então?
- Me tornei o dono da fábrica de tecidos em onze meses. Passei a desejar o cargo de prefeito. Achei que era o ponto mais alto da hierarquia de nossa sociedade. Roubei, menti, armei e até matei para conseguir.
- E depois de ser prefeito?
- Notei que havia alguém maior que eu. Quase tudo era eu quem decidia. Mas algumas pessoas ainda pediam ajuda aos céus das coisas que eu não podia resolver. Então decidi vir para o alto da montanha de Lombardo para descobrir quem estava por aqui, que era maior que eu. Se o encontrasse faria de tudo para tomar seu lugar e assim todos estariam sob meus pés.
- E por quê está voltando?Não deu certo?
- Fiquei lá por seis anos. Não encontrei ninguém por lá que poderia ser maior que eu. Então passei a receber as pessoas que lá chegavam em busca de Deus. E me apresentei como Ele. Todas falavam comigo e me faziam seus pedidos e agradecimentos. Não era tudo que eu conseguia resolver. Mas o que eu podia eu fazia.Não por bondade, mas para me manter no topo e vê-los se curvando a mim. Foi inesquecível!
- E por quê está descendo?
- Resolvi descer porque os pedidos estavam ficando muito difíceis e eu já não estava conseguindo resolvê-los. Quando eu não sabia como resolver eu os matava e jogava do alto do penhasco. Assim ninguém espalharia que eu, o todo-poderoso, não podia resolver todos os problemas. Mas minha saúde começou a ficar debilitada e cansei dessa vida de deus. Acho que quando vai chegando a idade, você só quer descansar. Pela primeira vez eu desisti e me achei no direito de descansar. Até Deus, depois de seis dias de trabalho descansou! Por que eu, depois de seis anos, não poderia descansar também?
- E você encontrou um casal pelo caminho?
- O casal passou por mim quando eu já havia desistido e quando me perguntaram sobre Deus eu disse que estava lá em cima em algum lugar.
- Mentiu para eles?
- Eles queriam acreditar. Sempre foi isso que todos que foram lá queriam. Acreditar que seriam respondidos. Quando me viam me cobravam uma solução imediata. Mas se não vêm ninguém eles esperam, acreditando que uma hora serão respondidos. Acho que esse Deus invisível é melhor. Sem a resposta eles vivem esperando e esperam, e esperam, e quando não são atendidos se culpam por ter pouca fé e se flagelam, e fazem promessas, e criam as mais absurdas respostas para explicarem o porquê de não terem sido atendidos. E eventualmente conseguem ser respondidos, e contam aos quatro cantos, e pagam promessas, e se flagelam, e fazem mais pedidos. E vivem assim.
- Preciso seguir – eu disse.
- Eu também.

Segui minha subida pensando em como ele havia sido cruel. E a quantos havia enganado. Então é por isso que ninguém voltava de lá da montanha de Lombardo. E por isso o senhor de óculos disse que as pessoas iam para o tal Vale do Rio Negro. Era exatamente onde ele jogava os corpos do penhasco. E quantas pessoas com esperança e com tanta vontade de serem atendidos, por pedidos tão nobres, como o casal que eu havia encontrado, foram mortas por ele? Por sua incompetência de assumir um cargo que não era capaz!

Em menos de dez minutos percebi que mais alguém se aproximava. Era um homem jovem forte, mas com uma expressão de cansaço. Ele se sentou sob uma árvore um pouco mais à frente do caminho e quando passei por ele, me chamou.
- Ei, garoto. Se está procurando por Deus,desista!
- Deus?
- Sim. Vai perder sua viagem. Todo mundo diz que ele está no céu e eu acabei de vir de lá e nem sinal Dele.
- E o que você queria com Ele?
- Vingança. Só isso.
- Vingança?
- Você é surdo?É isso mesmo. Ou tem alguma coisa de errado?
- Mas o que Ele fez pra você?
- Minha esposa. Me casei com a mais bela das moças da vilaî?Nos casamos na igreja. Era setembro e o céu estava lindo.Mas nos casamos na igreja porque todos diziam que teríamos a bênção de Deus. E Ele a levou dois meses depois.
- Que tristeza!
- Mas eu sou muito homem e não tenho medo de ninguém. Assim que a enterramos peguei meu facão e vim pra cá procurar por ele. Durante dois meses fiquei lá em cima, bem no céu, esperando o dia em que a montanha furasse o céu. E todas as vezes que isso acontecia, eu tirava meu facão, passava no chão e o chamava. Jurei que o mataria em menos de cinco minutos. Mas o tempo passou e ninguém apareceu. Foi um covarde. Ele a levou quando eu estava no trabalho e agora nem aparece para me enfrentar.
- Mas o que tem dentro do céu?
- Dentro do céu?Depois que fura?
- É. Depois que fura.
- Sabe o que tem?Outro céu. Lá em cima.
- Outro?
- Sim?As nuvens ficam do seu lado, mas o céu continua lá em cima.
- Então não se pode tocar no céu?
- Acho que não. Não estava lá para isso.
- Então preciso seguir.
- Se encontrá-lo avise que continue se escondendo, porque se eu, por acaso o encontrar vou tirar as tripas dele.
- Na verdade eu acabei de encontrar com Ele.Se correr você o alcança. Ele está de chapéu e é bem velho. Não está caminhando muito bem.
- Então ele desceu pra fugir de mim?
- Sim. Pergunte o que ele fez nos últimos seis anos no alto da montanha de Lombardo e acerte suas contas com ele.

Ele já sumia da minha vista quando terminei essas palavras. Se o senhor de chapéu não foi competente para fazer o bem como Deus, então será para assumir as suas falhas.

Segui minha subida, bem desanimado com a revelação de que havia outro céu depois do primeiro. Mas ao chegar lá no topo da montanha de Lombardo cheguei a brilhante conclusão: se o que eu quero é um pedacinho do céu, quando a montanha furar o primeiro céu, basta eu saltar sobre uma nuvem e pegar um pedaço dele. Não me importa o segundo. As nuvens estão penduradas no primeiro céu.
Aguardei por apenas dois dias e lá estavam as nuvens cercando a montanha. O lugar estava silencioso e as árvores pareciam estar dormindo. Olhei uma pedra bem na pontinha, que era a parte mais alta. Fui pra lá e vi o segundo céu, bem distante acima. Vi que as nuvens estavam agarradas em alguma coisa que eu não podia ver. Talvez o céu fosse transparente. Mas ele estava ali segurando as nuvens. Fui bem para a ponta do penhasco e só vi nuvens abaixo. Saltei tentando tocar o céu. Estiquei bem o braço, mas não toquei em nada e caí. Caí na direção de uma nuvem bem branquinha e cheia de espuma. Deveria ser assim a cama que eu iria comprar. Diziam que era macia como as nuvens. Mas passei por entre as espumas das nuvens e elas passaram por mim. Descobri que não só o céu era uma ilusão, mas também as nuvens. E não podia tocá-las, pois eram falsas. Assim como o céu era falso.Assim como o senhor de chapéu era um deus falso. Assim como a esperança de cura da filhinha do casal era falsa. Assim como o livro que o senhor de óculos acreditava. Fiquei desiludido.

Talvez todos que chegavam até esse ponto se desiludiam. Talvez fosse melhor viver com a ilusão, sem querer tocar em tudo que se vê. Com todos artifícios que se usam para explicar uma resposta não concedida por Deus eles vivem felizes e seguros confiando em alguém poderoso que está olhando por eles. E o senhor de óculos espera com paciência a volta de alguém para explicá-lo sobre todos os segredos. Mesmo que espere por toda a vida, viverá sempre com essa esperança. E o casal vai encontrar a filhinha morta, mas agradecerá a Deus que a levou desse mundo de sofrimentos. Eu poderia ser feliz com a idéia de que o céu era feito de porcelana. E que as nuvens eram macias feitas de espumas. Poderia estar agora andando de bicicleta, se eu tivesse esperado conforme o senhor de óculos me falou.
Passei o resto da minha vida pensando nisso.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

DESCONVERSAS


Raphael Montechiari

            - Eu fico sempre te ouvindo o dia inteiro e você nem liga pra mim. Já cansei de ficar escutando essas baboseiras que você fala o dia inteiro. É só eu te ligar e você começa a falar.

            - ...

            - Ahh...então quer dizer que vai ficar desconversando? Falando baboseiras. Olha só. Uma coisa eu te digo. Não vou te ligar mais. Só assim vou ter paz. Fica você inventando mil desculpas pra tentar explicar os problemas de sua vidinha medíocre e sou eu sempre que fico ouvindo. Você nunca pára pra escutar. Quero ver o dia que você ficar sozinha. Ah! Aí eu quero ver. Ninguém pra te ouvir. Aí vai dar valor ao bobo aqui. E tem mais. Já está ficando velha e ninguém mais dá valor a quem está velha não. Daqui a pouco sou eu quem vai te largar. E pegar uma novinha pra ficar fazendo todas as minhas vontades. Não toma jeito não pra você ver!E vou desligar agora porque vou para o quarto dormir. Não quero mais nada com você.

            (Bate a porta do quarto)

            No dia seguinte:

            - Oi amor. Estou te ligando pra  pedir desculpas por ontem. Eu estava muito aborrecido com as coisas que você foi me contando e no final botei a culpa toda em você. Achei que estava inventando tudo só pra me deixar triste. Mas a culpa não é sua. A culpa é daquele homem que sempre passa aqui embaixo gritando pra vender aquelas caixas de mamão. Ele me deixa nervoso e desconto em você. Mil desculpas. Nunca achei que eu fosse ficar tão transtornado. Depois vem você me contar esse monte de tragédias que vêm acontecendo. E o grito do cara vendendo mamão papaia ao mesmo tempo. Isso vai me deixando nervoso! A campainha do andar de baixo tocou ontem umas oito vezes. Soube que tem um cobrador que vem atrás do vizinho aqui de baixo. E ele finge que não está em casa pra não pagar. Mas sei que ele está. Porque eu ouço a descarga do banheiro dele e quando liga o chuveiro. E ontem, um pouco antes do cobrador chegar, ele deu uma descarga e tomou banho em seguida. Depois foi uma série de dedadas na campainha e nada. Isso tudo vai me deixando nervoso.

            A vizinha da frente está com algum problema também. Ela coloca sempre papéis no vidro da janela, como se estivesse querendo esconder alguma coisa. Depois rasga tudo e troca. Põe papéis mais escuros e de novo rasga tudo e troca. Põe papéis ainda mais escuros. E fica trocando até escurecer. Depois acende as luzes. E já está sem nenhum papel. Isso me deixa preocupado. Com todas essas coisas que você tem me contado que tem acontecido no mundo, fico preocupado mesmo. Quem sabe ela não mata pessoas e esconde os corpos? Durante o dia ela vai destrinchando os corpos e guardando na geladeira. À tardinha ela manda tudo pro lixo e depois, quando escurece, já está tudo escondido. Ela tem mesmo cara de assassina. Preciso desligar. Ela está olhando pra cá agora e pode estar querendo alguma coisa comigo.

            (Bate a porta do quarto)

            Vinte e sete minutos depois.

            - Oi. Acho que já podemos ficar de bem. Estava no quarto relembrando os bons momentos que vivemos. E o quanto eu aprendi com você. Além do que você é muito divertida e quando te ligo é minha única companhia. O que? Nós não podemos continuar juntos? Novelas! Sempre o mesmo assunto! Não fale mais isso comigo. Sabe que fico magoado. Olhe dentro dos meus olhos. Só vai ver lágrimas. Eu sei que às vezes sou rude. Mas já te contei sobre o cara que vende mamão papaia, né? Ele me deixa tenso. E a pia que não para de escorrer água. Amarrei ontem mesmo um trapo nela pra segurar. Mas quando abri hoje, para lavar minhas mãos, não consegui recolocar e tenho certeza que nunca mais conseguirei. Vou ter que viver com essa água escorrendo noite e dia, dia e noite, noite e dia. Você tem alguma idéia do que eu posso fazer? O que? Você parece que nem está me ouvindo. O que tem a ver o novo filme que vai passar hoje com isso? Tem alguma torneira vazando no filme e irão me ensinar a consertá-la? Aposto que não. Então não fale bobeiras. Já está tocando a campainha do vizinho de baixo. Vou desligar pra ouvir o que está acontecendo. Depois te ligo de novo e conto.

            (Bate a porta do quarto)

            Uma hora e meia depois.

            - Fale baixinho que o cobrador ainda está lá embaixo. Vou abaixar o volume. Deu uma merda do cacete. Acho que ele foi com polícia e tudo. Arrombaram a porta e pegaram o vizinho. Parece que deram uma surra nele e quebraram muita coisa por lá. Esses cobradores são muito violentos! Eles chamam a polícia e pagam a eles pra cobrar os maus pagadores. Estou até preocupado com a conta, de tanto que eu te ligo. O dia inteiro. Todo dia. Acho que vou até ficar devendo e os cobradores trarão a polícia e quebrarão minhas pernas. Acho melhor até parar de te ligar. Daqui a pouco começarão a tocar a campainha aqui e eu não vou atender. Porque eles são muito violentos. Acho até que irão arrombar depois e me bater. Mas o quanto eu puder fingir que não estou aqui vou fingir. A conta virá tão alta que não poderei pagar. É. Preciso ficar calmo. Jamais vou parar de te ligar. Sabe que é minha única companhia, né? E de que adianta eu ter pernas sãs se é a sua companhia que me faz bem? E se você estiver me falando coisas tristes é só eu mudar de canal que tudo se resolve. Boto num filme de amor e só vou ouvir coisas belas. Mas hoje vou ficar aqui, só te ouvindo, o dia inteiro. Tenho falado demais...

sábado, 20 de fevereiro de 2010

EU EXISTO

Raphael Montechiari

E lá vou eu. Quem sabe pra onde? Quem sabe quando? Tenho a mesma dúvida de todas as pessoas no mundo. Não tenho a mínima idéia pra onde eu vou quando ele morrer. Fui criado pela sua mente e vou, sabe Deus para onde, quando ele se for.

Vou me apresentar:

Sou o Inácio Antão, amigo imaginário de Carlos Pontes, dono da Hospedaria Central. Ele me tem como amigo desde que surtou, na última páscoa. Tenho estado com ele, conversado e feito companhia durante todo esse tempo a esse grande miserável. Passei bons momentos com ele e outros não tão bons assim.
Geralmente apareço para aconselhá-lo e preciso repetir várias vezes o conselho para que ele o faça. Ninguém mais me vê ou me ouve. Só ele. Mas eu existo. Se estou aqui te falando tudo isso é porque existo. Como disse o outro: Penso, logo existo. E eu não só penso por mim, mas até pelo Carlos Pontes. Tanto que dou conselhos para ele.

Está certo que não tenho dado bons conselhos para ele, de acordo com a ética e moral da sociedade em que ele vive. Mas fui criado pela parte reprimida do cérebro de Carlos Pontes. Reprimida por essa mesma ética e moral da sociedade, criada para se ter uma suposta ordem. Mas tudo que falo e faço são coisas que a natureza humana quer fazer mas não pode, por causas das regras e leis criadas. Então não tenho culpa. Falo o que ele quer ouvir. Faço o que ele quer que eu faça.

O último conselho que dei foi pra ele assaltar a casa do senhor Elivelton Moreira, o magnata da cidade. Carlos estava com problemas financeiros e há muito tempo seu salário não dava para nada. E eu sabia que ele achava essa vida uma injustiça. Eu ensinei ao Carlos Pontes a fazer bombas caseiras, a usar bem uma faca para cortar sob os braços, na altura onde passa uma artéria importante. Ensinei também como não deixar pistas de um crime e como apagá-las. Mostrei pra ele alguns exemplos de pessoas que corrompem as leis e continuam numa boa. O próprio senhor Elivelton Moreira ficou rico desse jeito corrompendo várias delas. Falei da necessidade de irmos contra tudo e todos para seguir nosso instinto natural. Expliquei que primeiro temos que estar felizes conosco e depois transmitiremos essa felicidade a outros. Mas para alcançarmos essa felicidade é extremamente necessário sermos nós mesmos. Fazer aquilo que queremos. E o que ele mais queria naquele momento era ficar rico e poder se livrar do seu trabalho medíocre. Só precisei alertá-lo desse desejo oculto e reprimido. E lembrei para ele durante todos os dias da minha vida. Falava, falava e falava. Fiz até uma rima que eu repetia constantemente no seu ouvido: “Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira.”. Imagine isso no ouvido durante vários e vários dias? Então eu o convenci.

Compramos uma espingarda calibre doze, luvas e uma touca preta. Era preciso muita cautela para não ser identificado ao entrar na casa e as impressões não poderiam ser deixadas por onde passássemos. Coisas básicas que se aprende em qualquer filme. Entreguei o plano prontinho, só para ele executar. Não tinha falhas. Era perfeito. Mas o maldito covarde, no último momento, fraquejou e foi baleado pelos capangas do senhor Elivelton Moreira. E agora ele estava entre a vida e a morte. Na verdade, estava somente aguardando a morte.

O senhor Moreira, muito influente, e sem nenhum receio de ferir a ética e a moral, já havia mandado um dos seus para o hospital terminar o serviço inacabado. E é ele quem acaba de entrar no quarto, sem disfarce nem nada. Vai nos matar.

- Acorda, Carlos – gritei para ele desesperado.

Balancei sua cama e bati na sua cara. O capanga já tirava o frasco com o veneno do bolso, puxava todo ele para uma seringa e aplicava no tubo de soro. Eu nada podia fazer para evitar.

- Acorde, Carlos – gritei já mais fraco.

Agora o veneno já entrava em suas veias e eu podia senti-lo me queimando por dentro.

- Acorde, miserável – sussurrei, já sem forças.

- Acorde....

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A SENHORA DE CABELO LARANJA

Raphael Montechiari

-Olá Catarina. É você a Catarina, certo?
- Sim. Sou eu. E você?
- Vim recomendada por uma conhecida sua.
- Conhecida?
- É. Ela esteve junto de você durante os últimos anos.
- Ah. Aquela senhora de cabelo laranja?
- Isso.
- Sim. Ela está sumida mesmo. Passava a maior parte do tempo comigo. Quando eu ia lavar roupa no rio ela ficava me olhando. Não me ajudava. Só ficava ali me olhando. Às vezes chegava perto e apertava o meu coração. E depois soprava minha barriga. Era um dor muito forte que eu sentia no coração. O frio na barriga, com seu sopro, também me incomodava bastante. Mas o aperto no coração era o pior. Eu olhava para o céu, pedindo a Deus que me desse força. Ficava assim olhando para o céu até ela parar. Depois ela ficava por ali. Me olhando.
- E mais o que?
- Mais um monte de coisas.
- Como?
- Mais um monte de coisas. Ela me mostrava umas imagens. Meu namorado e eu, na porta da capela, abraçados. Isso foi no primeiro dia que ficamos juntos. E mais outras imagens de momentos bons. Só de momentos bons. No início ela vinha duas, três vezes por semana. Depois passou a morar lá em casa. Ela fazia a cama ao lado da minha. Um colchão velho mas com lençóis bem branquinhos. Travesseiro alto. E ficava ali me mostrando imagens e lembrando histórias. E vinha apertar meu coração. Mas quando eu ia encontrar o meu namorado, ela sumia. Ela nunca se encontrou com ele. Nem sei como conseguiu tantas imagens nossas assim. Logo que eu tomava o trem para voltar já notava sua presença ao meu lado. Apertava tanto o meu coração que eu até chorava, enquanto via meu namorado acenando.
- Então! Eu vim a pedido dela.
- Eu não gostava muito dela. Você a conhece bem?
- Sim. Fazemos vários trabalhos juntas.
- Ela sempre foi muito discreta e sempre presente ali ao meu lado. Às vezes eu até a esquecia. Mas quando desocupava a mente eu percebia que ela estava ali e, ao me virar para trás, lá estava ela me olhando. Era só eu a descobrir que ela vinha com aquela mão ossuda e enrugada para apertar meu coração. E soprava frio na minha barriga. Várias e várias vezes eu chorei. Eu já contava os dias para ver o meu namorado e me livrar, nem que fosse por algumas horas, de sua tortura. Ela desaparecia. Quando estava com ele eram os melhores momentos de minha vida. Mas passavam rápidos demais. Quando eu dava por mim, lá estava eu, indo embora, com a senhora de mão ossudas e enrugadas, cabelo laranja, apertando meu coração e soprando minha barriga.
- E por quê ela se foi?
- Você não soube?
- De que?
- Da guerra?
- Soube. Ele foi pra lá?
- Foi. Fiquei muito triste no dia em que ele me enviou uma carta dizendo que iria. Imediatamente peguei o trem e fui vê-lo. Viajei as doze horas até sua cidade. A tal senhora estava lá, do meu lado o tempo todo, com as imagens do último encontro. Todas novíssimas. E aos poucos foi me mostrando as imagens mais antigas, já desbotadas pelo tempo. E ela lá. Apertando meu coração. Ao chegar na estação, no meio da confusão e do empurra-empurra no desembarque, ela sumiu de novo. Procurei o meu namorado e encontrei-o muito triste. Ele confirmou que iria para a guerra e não tinha outra escolha. Aproveitamos bastante nosso fim-de-semana e ele, em nenhum momento, me disse quando voltaria. Eu também não perguntei. Mas ele me prometeu mandar cartas diariamente. Eu lhe disse que quando recebia suas cartas a senhora de cabelo laranja não se aproximava de mim até que terminasse de lê-las. Em seguida ela vinha com muito mais força que o normal e apertava meu coração.
- E quanto tempo ele ficou por lá?
- Recebi cartas por duas semanas. E a última que me mandou falava sobre uma mulher que havia encontrado numa cidade destruída pela guerra. Todo seu pelotão havia sido bombardeado e sobraram poucos com ele. A mulher sempre o olhava de longe. Até que um dia se aproximou e disse: “Amanhã a gente foge daqui!” Na carta ele me disse tudo isso e ainda disse o quanto me amava. Eu entendi que era o fim. Chorei por várias e várias noites, mas me senti amada. Sabia que ele havia ido com ela mas era a mim que ele amava. E fiquei por muito tempo com a senhora de cabelo laranja apertando meu coração sem parar. Já nem podia ir lavar as roupas no rio porque não tinha força pra me levantar.
- E como era essa mulher que ele encontrou?
- Disse que era alta e bem magra. Com uma palidez mórbida. Alguns amigos já tinham esbarrado nela antes dos bombardeios. Ela caminhava no meio de todas aquelas explosões e tiros, sem nenhum medo de ser atingida. Caminhava olhando fixo para frente, às vezes escondida pelas fumaças, às vezes pelos gritos. E foi isso.
- Então. Eu vim pra ficar no lugar da senhora de cabelo laranja. Agora sou eu quem vai apertar seu coração e te fazer sofrer. Às vezes ela virá. Provavelmente hoje vai dar uma passada aqui. Trará imagens do seu namorado e apertará seu coração. Mas eu ficarei a maior parte do tempo com você. Até que venha alguém para o meu lugar.
- Sabia mesmo que viria.
- Sim. Eu sei que me aguardava.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

APUNHALADO



Raphael Montechiari

Era um vinte e três de janeiro, quentíssimo, como era de se esperar dessa época do ano. O tempo estava nublado, mas o mormaço podia queimar a pele de quem andasse fora da sombra. Eu, como sempre fazia às sextas-feiras, fui ver o meu amor. Ninguém poderia imaginar que naquele dia ela faria aquilo. Mas fez.

Ao chegar na porta de sua casa resolvi dar uma espiada pela janela para vê-la e, em segundos ela esticou seu braço por cima do batente da janela e com uma força surpreendente, sua mão travou no meu peito rasgando-o. Senti uma dor visceral e senti meus lábios estremecerem. Estava paralisado com o susto e só conseguia observar o que ela estava fazendo comigo. Sua mão entrando e arrancando meu coração do peito. A dor era tamanha que senti minhas pernas fraquejarem e minha vista escurecer. Achei que cairia morto em segundos, mas o resto de orgulho que sobrou me empurrou para longe dela e pude fugir. Minhas mãos apoiaram a ferida para que não se esvaísse todo o meu sangue. Minhas pernas corriam numa velocidade estonteante. Parecia que elas estavam com mais medo do que eu.

Senti que não conseguiria chegar em casa consciente e então me sentei na borda do chafariz da praça. Coloquei pra fora o excesso de dor em forma de lágrimas. Lágrimas ácidas que corroíam a pele do meu rosto e faziam um caminho marcado até a boca. Depois pingavam e eu podia ver os buracos que faziam no chão de cimento da pracinha. O senhor de calças verdes e a menina com um algodão doce, que estavam caminhando em minha direção, mudaram de rota e foram pelo canteiro em direção ao grupo de pombos, que brigavam por uma migalha do pão de cachorro quente que o guarda devorava. O dono da carrocinha de cachorro-quente conversava com ele e o guarda respondia rindo, deixando escapar pelos cantos da boca ervilhas e várias migalhas de pão. E os pombos comiam e brigavam e voavam para fugir do homem de calças verdes e da menina com algodão doce que se aproximavam abruptamente, olhando para trás, fugindo do homem de cabelos penteados, camisa bege clara riscada e sapatos pretos engraxados, que estava sentado na borda do chafariz, chorando lágrimas ácidas e com o peito todo vermelho e encharcado de sangue. E, pior de tudo, sem um coração.

À minha volta as pessoas começaram a se perguntar o que havia acontecido com o atendente da farmácia. A senhora com um lenço azul na cabeça não conseguia disfarçar que olhava, mesmo fingindo estar conversando com a negra alta e gorda. Elas pareciam querer que eu percebesse que estavam me olhando para assim poderem perguntar o que havia acontecido. Os meninos que jogavam bola de gude ao lado pararam estáticos, em uma fileira, para assistir a cena. A senhora que batia a toalha na janela para preparar a mesa do jantar a sacudiu mais vezes do que o necessário. E eu me levantei pisando forte, tão forte que sentia que afundava o chão.

A partir daquele dia vinte e três de janeiro passei a seguir minha vida sem o coração. Sentia dores horríveis, principalmente quando me lembrava de que ela havia feito isso comigo. Mas já não tinha coração para odiar nem para perdoar nem para amar mais ninguém Só um buraco no peito que me trazia dores durante todo o dia.

No dia vinte e sete de janeiro ela veio até minha casa e pude perceber, já de longe, sua presença. Não sei se pelo cheiro, que eu adorava há quatro dias atrás e que agora fazia dobrar minhas dores no peito. Mas eu sabia que ela se aproximava e tranquei todas as portas e janelas. Fechei o basculante do banheiro. Era bem pequeno, mas seus olhos poderiam passar por ali. E sob a porta coloquei um cobertor enrolado, vedando qualquer passagem dela ou de sua voz ou de seu terrível cheiro. Ainda assim me senti inseguro, após ouvir as batidas na porta. Fugi pela janela dos fundos e desapareci no quintal. Passei pelo curral do Coronel Alvilar e subi pelas ladeiras do cemitério até chegar ao morro da caixa-dágua. E lá fiquei, por três dias e três noites. Até que senti que alguém se aproximava. Não me movi e ouvi os passos de três ou quatro pessoas. Elas conversavam e falavam que ali era o lugar que alguém sempre se escondia, desde pequeno, quando estava com medo.

Durante a invasão dos rebeldes, quando eu era bem pequeno, vi meu pai ser morto e minha mãe fugir com minha irmã, ainda um bebezinho, para o morro da caixa d’água. E ela me mandou segui-la. Ali permanecemos por duas semanas, até que as tropas do governo vieram e espantaram os rebeldes para as montanhas. Eu sempre lembrava disso com tristeza e conforto. Tristeza por ter perdido meu pai. Conforto por poder contar com minha mãe me guiando e protegendo. Mas agora não sentia nada. Acho que todo tipo de sentimento foi-se embora com o coração. E ele estava com alguém que não tinha coração. Talvez por isso tenha querido se apoderar do meu. As pessoas agora iam embora e eu reconhecia a voz da minha mãe. Mas eu não sentia nada por ela. Nem piedade, por talvez estar sofrendo por mim. Ela não poderia me culpar.

Segui pelas montanhas, pelo caminho que os rebeldes haviam seguido há quase dezenove anos atrás. Andei por cerca de vinte dias beirando o rio e subindo as montanhas. As corredeiras eram assustadoras e talvez fosse um bom lugar para se jogar um corpo sem coração. Fui caminhando e passando em várias cidadezinhas da região. Uma região árida e de minúsculos povoados, todos cheios de corações, olhando com piedade para um sofredor. O sol já estava bem quente quando pedi um copo d’água a uma jovem, de cabelos cortados, pretos, que estava na porta da venda onde trabalhava. Era uma tarde muito quente e quase ninguém caminhava nas ruas. Só ficavam parados nas sombras, nas portas de casa ou das lojas, provavelmente pelo calor que dentro fazia também.

- A água não está gelada, mas também não está quente. Aguarde aqui fora se não for comprar nada. E se for comprar, entre sem as mãos. Deixe-as do lado de fora e me indique o que quiser que eu pego para você. Não suporto mais ladrões aqui na venda do meu pai.

Ela entrou e eu não quis acompanhá-la. Voltou com um copo da água mais limpa e brilhante que eu já havia visto. Quando notei, o copo estava vazio e ela sorria para mim. Pegou o copo em silêncio e entrou. Nem pude agradecer, pois ainda estava tentando me lembrar do sabor da água que eu não havia sentido. O tempo passa tão depressa que só ficamos com as lembranças. Mas dessa vez foi tão depressa que a lembrança se foi com o tempo. Ela voltou com outro copo e com outro sorriso.

- Você estava mesmo com sede! Faz muito calor aqui e pela poeira no seu sapato e na sua roupa, você vem de longe. Desculpe achar que você era um ladrão, mas só esse mês três forasteiros já nos roubaram. Suas mãos são tão rápidas que só damos falta das coisas quando já estão longe. E, apesar de sujo, parece um rapaz de bem. Mas é melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água peça no armazém logo ali na frente.

Eu agradeci da boca pra fora. Não poderia ser de coração. Mas agradeci. Fui andando, já mais revigorado, e não pude evitar olhar para trás. Ela ainda acenava um adeus e, quando me viu olhando, fechou o sorriso e entrou na venda.

Caminhei por mais dois meses por todas as vilas, povoados e cidades da região até que as dores no peito passaram. Mesmo quando eu me lembrava dela. Do meu antigo amor. Ainda havia vestígios de dores, mas eram pouquíssimas. E havia uma casca no peito que eu não retiraria. Bastaria eu continuar andando por mais um tempo que ela cairia. E foi o que aconteceu. Com mais cinco meses de caminhada, até o final do vale pequeno, e após dar a volta pelas montanhas do norte e começar a caminhada de volta, vi a casca cedendo e dando lugar a uma imensa cicatriz que nunca mais me faria esquecer o que aconteceu.

Antes de chegar em casa passei por aquele povoado onde eu havia bebido a melhor água de toda a minha vida. Retornei àquela venda e o tempo já estava bem mais fresco. Mas eu queria beber mais um pouco daquela água. E estavam todos lá. Como se nunca tivessem se mexido. E a jovem, de cabelos pretos cortados, já sorria para mim.

- Água?

Eu sorri de volta e disse que sim. Mas pedi que enchesse uma garrafa e dei-lhe algum dinheiro. Ela agradeceu e pegou uma linda garrafa pintada com flores amarelas e folhas verdes. Entrou e voltou com ela cheia da melhor água que poderia existir. Trouxe também uma pequena pazinha e com ela, subitamente, furou meu peito, sem me dizer nenhuma palavra. Só com um sorriso no rosto. Abriu bem para os dois lados e com a outra mão depositou algumas sementes. Em seguida fechou bem e bateu com as costas da pazinha em cima para ficar bem fechado. Eu assistia a tudo atônito, mas não sentia dor. Pelo contrário. Foi a melhor coisa que havia me acontecido nos últimos tempos.

-É melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água, peça no armazém logo ali na frente.

Agradeci com água nos olhos. Poucas mas verdadeiras. Senti algo por ela que não saberia descrever nem com mil palavras. Sei que já havia sentido algo assim antes, mas só sei. Sinto que nunca havia sentido nada assim em toda minha vida. E de lá saí com uma vontade enorme de olhar para trás, mas não queria tirar aquele lindo sorriso do seu rosto.

Cheguei no morro da caixa d’água e desci pelas ladeiras do cemitério. Passei pelo curral do Coronel Alvilar, entrei pela janela de trás, que ainda estava entreaberta, e me deitei.

sábado, 30 de janeiro de 2010

SILÊNCIO QUEBRADO


Raphael Montechiari 


         Ele já estava na cama, deitado, às oito da noite. Também em uma noite como essa ele teria que tentar dormir cedo. A janela estava escancarada na tentativa de atrair um pouco de vento. Qualquer brisa que passasse por ali seria bem-vindo naquela noite de quarta-feira. Estava tão quente que, mesmo nu e com a janela escancarada, a única coisa que o mantinha vivo era o suor. Era o que o salvava. Mas a janela aberta trazia mosquitos, que não se importavam com o calor e nem com a mistura de sangue e suor que consumiam. Se fartavam do sangue dele, enquanto podiam. E mesmo naquele inferno, normalmente, ele ainda conseguia dormir.
         A vila, no entanto, era muito silenciosa à noite. Só se ouviam rumores esporádicos, quando algum ventinho resolvia bater nas folhas das poucas árvores daquele maldito lugar. E mais nada. Há alguns tempos ainda se podiam ouvir cigarras, mas elas também deixaram a vila ou morreram. A verdade é que não mais cantavam por lá. E o calor era silencioso e com um gosto de cica, que deixava a boca colando. E ele lá, esperando o sono chegar.
         Ele morou toda sua vida ali, se é que aquilo era vida. Desde que seus pais se foram ele jurou a si mesmo que sumiria dali assim que pudesse. Mas durante todo o tempo em que  viveu ali, nunca havia se sentido tão só como naquela noite. Seu filho havia partido cedo, para Urais, levar o novilho para vender. Quando o compraram, ainda tinham a esperança de que ele cresceria e se tornaria um boi tão grande, que poderiam conseguir dinheiro para comprar uma casa em Tarracho ou até em Rio Dourado. Mas o animal estava definhando e, se não vendessem o mais rápido possível, não teriam nada. Os vizinhos já o olhavam e se preparavam para matá-lo e saciar a fome a qualquer momento. Mais uma semana ali e o perderiam para aqueles famintos. Vendendo-o conseguiriam ao menos um dinheirinho para alugar uma casinha em alguma outra cidade, onde se possa viver, e tentar recomeçar. O dinheiro daria para umas três ou quatro semanas. Mas era o que podiam fazer. Depois decidiriam o que fazer. Era a última esperança.
         O rapaz havia saído com o novilho  às duas da tarde e só voltaria às dez horas do dia seguinte. Então partiriam e ninguém mas ouviria falar deles. Era tudo que ele queria. Talvez um pouco mais de vento também não faria mal. O cheiro de madeira velha e de naftalina se misturavam com o cheiro de suor e com as coceiras. Eram os últimos lençóis limpos. A vila não tinha água para se desperdiçar com banhos ou lavagens de roupa. O único poço, ainda com água, era disputado por todos os moradores da vila e a água só poderia ser usada para beber ou cozinhar. Qualquer um que usasse para outro fim seria proibido de voltar ao poço. Então toda segunda quarta do mês, todos os moradores da vila partiam, como que em romaria, para São Pedro das Águas Claras. Eles iam para lavar suas roupas e tomar banho no rio límpido que cortava a cidade. Era uma viagem de dezessete horas de ida e dezenove de volta. E era o dia em que a cidade ficava deserta. Só ele ficou. Pela primeira vez. Até os velhos, doentes, incapacitados iam. Carregados ou se arrastando. Eles não permaneciam ali. Não sei se era pela necessidade de higiene ou pelo medo.
         Diziam que nessas noites, enquanto os moradores iam se banhar, os mortos vinham para a vila se banhar de vida. Passeavam  pela rua principal, se divertiam e tomavam conta das casas, relembrando o tempo em que eram vivos. Mas até então, ninguém havia ficado para confirmar se era ou não verdade. E ele se lembrava disso tudo. Deitado ali, sujo, suado e esperando a última noite naquela vila passar voando. Ele achou que dormiria rápido, como era de costume. Logo chegaria a manhã trazendo o seu menino, com o dinheiro do novilho. E partiriam para nunca mais voltar. Aquela vila cheirava a morte e quem ali fica, só está à espera dela. Não há mais o que se esperar de um lugar como aquele. Pra se ter uma idéia a parte que mais crescia na cidade era o cemitério. Já estava chegando até à praça e ia invadindo as casas abandonadas. O que ele mais queria era viver um pouco, coisa que não fazia há muito tempo, desde a época que lá havia pasto, água e muito gado. A plantação de milho abastecia até as cidades vizinhas e era uma vila que em breve se tornaria uma cidade. Mas em algum momento, que ele não se lembra, algo aconteceu e tudo passou a dar errado. A chuva não veio, o pasto queimou, o gado morreu e a água, dos poços, se secou. Ele tinha durado muito tempo ali. Precisava viver. E se aquilo ali já não era a morte, estava longe de ser vida.
         A casa era enorme. Quartos grandes e vazios. Cheios de calor e sem vento. Poeira e solidão preenchiam os outros cômodos da casa, inclusive a sala, logo na entrada. A porta da frente não fechava direito, por conta das dobradiças enferrujadas. Algumas janelas não mais abriam, pelo mesmo motivo. As torneiras estavam inutilizadas e eram simples enfeites. O banheiro guardava tábuas, uma grande mesa velha e tijolos. Sem água ele era inútil. Há cinco anos não corria água nos canos da vila. Antes disso a água era jogada para as caixas por bombas manuais. Recolhiam a água farta dos poços que toda casa tinha. Isso até eles secarem e só restar o poço da casa da senhora Dulce Marrone. Ela já havia morrido há uns vinte anos atrás e sua casa estava abandonada. Mas o poço ainda estava vivo e o único que tinha água na vila. Era o poço que todos dividiam.
         O sono simplesmente não chegava. Um ruído chegou aos seus ouvidos, após ter cortado todo o ar quente que tomava conta daquele ambiente. Era algo como uma batida. Mesmo de olhos fechados ele podia vê-las, tamanho era o silêncio da noite. Batidas empoeiradas, de madeira. E eram constantes. Seriam passos? Ele se arrepiou e se lembrou que não havia mais ninguém ali, além dele. Seus olhos estavam fechados e começou a se sentir gelado. Estava inerte para que, quem quer que se aproximasse, não o notasse ali. As batidas pareciam se manter em um mesmo lugar. Não, não eram passos. Passos se aproximam ou se distanciam. Aquela batida estava vindo sempre de uma mesma direção. A casa era todo mapeada em sua mente e ele sabia exatamente que a batida vinha do segundo quarto, depois do banheiro. A batida ecoava pelos corredores, entrava pela porta, refletia no espelho e vinha de encontro aos seus ouvidos, na cama. A janela, à sua direita, absorvia os restos do som e os lançava para fora. Sentiu calafrios ao se lembrar da história das almas. Será que estavam chegando? A batida continuava e ele tentava imaginar o que estariam fazendo. Talvez pregando as janelas e portas para que ele não fugisse quando o encontrassem. Sentiu um calafrio, o mais forte que já havia sentido na vida. Ainda de olhos fechados ele podia sentir que alguém o observava. E esse alguém estava sentado na cadeira ao lado da janela, onde estava esticada sua camisa, calças e cinto. Ele estremeceu em seguida. Uma senhora, corcunda, com um vestido azul remendado, esperando ele abrir os olhos para cantar uma canção triste. Talvez querendo saber o que um vivo fazia na noite dos mortos. Talvez uma menina, que havia morrido de tuberculose há muito tempo. Pálida e com os olhos fundos, ninando uma boneca de porcelana. Ele estava imóvel e não teve coragem de abrir os olhos. Na janela aberta já não entrava vento algum. A tensão o pressionava contra a cama. Ele sentiu falta dos mosquitos e sentiu que mais alguém o espiava pela janela, porque o vento não chegava. Eles se perguntavam o que ele fazia ali. A notícia já devia ter corrido por toda a vila e estavam querendo vê-lo.
         A batida parou por alguns instantes e recomeçou em outro ponto da casa. O sono estava longe de chegar. Ele começou a ouvir estalos. Sabia que se abrisse os olhos e encarasse uma alma morreria de medo. Na hora. E elas estavam ali. Naquele momento ele soube que aquele tinha sido o maior erro de sua vida. Talvez o último. Ter ficado ali, naquela noite, foi uma escolha insana. Poderia ter ido com o filho para Urais ou acompanhado, como fazia há anos, o povo da vila. Mas sua descrença de que algo acontecia naquelas noites, agora iria matá-lo.
         Algum tempo depois, ele notou que o vento havia voltado a bater e os mosquitos, para sua alegria, o picavam como antes. Será que haviam ido embora? Talvez os da janela. Mas na cadeira tinha alguém o vigiando. Com certeza! Um cheiro de fumo, bem de leve, surgiu no ar. Seria um velho, barbudo, com um chapéu de palha? Com seu cachimbo? Dando baforadas no ar? Sim. Um cheiro de fumo. Apertou os olhos com toda força e passou a prestar atenção na batida.
         O som pareceu ir ficando mais claro. Com a atenção voltada para a batida ele percebeu que não eram batidas. Era um som de algo sendo roído. Estava mais próximo e por isso ficou mais claro. Sim. Ratos! Na última semana ele havia matado alguns que apareceram, para comer o arroz que o governo havia mandado. Eles haviam sumido junto com a comida e voltaram com ela. E agora estariam roendo madeira para fugir dessa vila antes que a morte os apanhasse. Sim. Poderia abrir os olhos agora e rir de tudo isso. Contaria ao seu filho o medo que havia passado e como as histórias o influenciaram, a ponto de quase ter se borrado de medo por conta de alguns ratos. Todos ririam e eles estariam em Rio Dourado tomando chá de ervas e comendo torresmos, felizes. Teriam pelo menos uma lembrança bem humorada da vila maldita, que só tinha solidão, fome e tristeza. Então se preparou para abrir os olhos. Respirou fundo, relaxou a face e sentiu que o ar tinha parado de novo. Há algum tempo os mosquitos não o mordiam. Outro daquele calafrio percorreu seu corpo e a presença de alguém no quarto era certa. O barulho havia parado. A sensação de que a janela estava cheia de curiosos o olhando foi mais forte do que nunca. Estava estático e ouvia o seu coração batendo forte. Passou a ouvir passos calados, como de crianças descalças. Seco e agudo. E a porta rangeu. Ouviu uma troca de olhares. Tensionou novamente a face e fechou os olhos, apertando-os com toda a força. Fora isso, nada mais mexia nele. Passou a mentalizar os movimentos da próxima ação. Levantaria e voaria pela janela. Só iria parar de correr quando estivesse bem longe daquele maldito lugar. Novamente um silêncio. E, enfim, uma respiração à sua esquerda, bem perto da porta. Sentiu uma baforada no braço e estremeceu-se todo. Ele já se preparava para se levantar e correr, a toda velocidade, quando foi surpreendido por um ganido, vindo da mesma direção. Todo seu plano foi por água abaixo pois lhe faltou força nas pernas. Elas começaram a tremer e um grito de pavor fugiu pela sua boca. Suas mãos, como que protegendo o rosto, viraram-se na direção do barulho. Ele abriu os olhos e, ao seu lado, estava Bonachão, o maldito vira-latas da senhora Dulce Marrone, abanando o rabo para ele. Respirou aliviado e imaginou que quase havia morrido por causa de um cão. Imediatamente virou o rosto para a cadeira, que ficava ao lado da janela e nos viu lá. Eu, sentado na cadeira, fumando meu cachimbo e todos os outros na janela o espiando. Desde então ele passou a visitar a vila todas as segundas quartas do mês conosco.
     







sábado, 23 de janeiro de 2010

O VENDEDOR DE IDÉIAS


 Raphael Montechiari



- Bom dia. Pode chegar cliente.
- Bom dia. Olhei a placa na fachada e fiquei curioso. Como funciona seu negócio?
- Meu negócio? Vou te explicar, senhor. Sente-se aqui, por favor. Aí, não. Essa cadeira ainda está em testes. Sente-se nessa aqui. Isso.
- Então. Quais idéias você vende?
- Olha, eu vendo idéias de todos os tipos. Vou lhe dar alguns exemplos. Conhece aquela grande flor de lótus esculpida na praça? Fui eu que vendi a idéia para o escultor. O prefeito queria uma bela escultura na praça e nada do que ele sugeria agradou ao prefeito.
- Então ele te procurou?
- Sim. O garoto que entrega os folhetos tem feito muito bem o seu trabalho. O escultor me disse que já tinha gastado todo seu arsenal de idéias e já estava saturado do prefeito, quando resolveu me procurar, após receber um panfleto da minha loja.
- E o prefeito gostou da sua idéia?
- Sim. Assim que dei as opções das idéias para o escultor ele escolheu essa. De cara. E adorou! Me pagou com gosto e disse ter certeza que o prefeito iria adorar a idéia. E foi o que aconteceu.
- Muito bom. Mas o quê?
- Outras idéias?
- É. Mas que outras idéias você vendeu?
- Já reparou que de uns tempos para cá não se ouvem mais latidos de cachorros? Fui eu quem resolveu esse impasse. Estava havendo uma guerra entre os moradores que tinham cães e os outros que não suportavam mais os latidos. Apareceram alguns cães mortos e alguns vizinhos mortos em seguida. Virou caso de polícia. Foi uma verdadeira guerra.
- Sim. Ouvi falar.
- Então. O prefeito já tinha tentado propor uma proibição para cães, mas não foi bem sucedido. O partido pró-cães não deixou passar essa proposta e o prefeito foi ameaçado de morte. Depois propôs um local isolado para os cães dormirem à noite, bem longe da cidade. Também não foi bem sucedido. Os donos queriam eles juntos, além de quê alguns cães serviam para vigiar as casas durante a noite. O prefeito ainda tentou criar uma série de resoluções como doar protetores auriculares para a população e até construir um grande hotel isolado para quem estava sendo incomodado. Também não deu certo. O partido contra-cães não deixou passar as propostas e o prefeito foi ameaçado de morte.
- Que situação!
- Sim. Então o prefeito teve a melhor idéia que poderia ter tido: veio me procurar.
- E então?
- O prefeito quis ouvir todas as idéias e pagou por todas elas. Até porque as primeiras não eram tão boas assim.
- E qual foi a escolhida?
- A prefeitura doa soníferos para os cães que não são de guarda e os donos devem dar aos cães toda noite. Caso contrário uma multa é aplicada ao dono. Para os cães de guarda, que precisam estar alerta durante à noite, foi dada a seguinte solução: cortar as cordas vocais do animal. Uma cirurgia rápida, indolor e segura. Assim os moradores pró-cães poderiam ter seus amigos e guardas, sem incomodar aos outros vizinhos.
- Bravo! Bravíssimo! E quanto te pagam?
- Depende da idéia. Quando me passam o que querem eu penso em várias soluções e, de acordo com a qualidade da idéia, o preço é maior.
- Muito bom. Você conta as idéias e eles escolhem a melhor, cada uma com um preço.
- Nada disso! Eu escrevo as idéias em papéis diferentes e anoto o preço de cada uma. Assim, de acordo com meu julgamento, eu ponho os preços nas idéias e o cliente escolhe qual quiser. Mas só leio a que eles comprarem. Assim não corro o risco de dizer as idéias e o cliente não pagar. Ninguém come a maçã e decide depois se vai pagar ou não. Estamos numa cidade cheia de malandros e é preciso ser mais malandro pra se dar bem.
- É verdade. Mas e se a idéia não agradar.
- Eu vendo as idéias. Se gostar ou não é um risco que se corre. Ali está o cartaz: não aceitamos devoluções. Porque depois vem um malandro, diz que não gosta e não paga. Aí você vai ver ele colocando ela em prática. Comigo não! Quer a idéia? Pague que eu a digo. Senão não tem negócio.
- Está certo. Mas me diga: como tem tantas idéias assim?
- Essa foi uma idéia que tive há onze anos atrás e mudou minha vida. É claro que é o segredo do meu sucesso e não passaria pra ninguém se eu não estivesse me aposentando. Mas não vendo barato.
- Eu pago quanto quiser.
- Então eu quero mil e quinhentos florins mais o seu cavalo que está ali na porta. Mas já sabe. Não aceito devolução. Se não te servir, lamento muito.
- Tudo bem. Aqui está o dinheiro. E o cavalo já é seu.
- Heleno!
- Sim senhor.
- Leve o cavalo para o curral. Agora ele é meu.
- Sim senhor.
- Bem. Vejamos: cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos, trezentos, quatrocentos e quinhentos. Certinho. Tenho que conferir tudo. Como já disse, essa cidade está cheia de malandros.
- E então?
- Olha. Vou te explicar como funciona: as idéias vêm na cabeça de todos nós. É como uma onda de rádio em uma freqüência definida. Se ficarmos pensando em um determinado assunto é porque estamos sintonizando em uma determinada freqüência. E todas as idéias daquela freqüência, ou seja, daquele assunto, vão entrar e vamos vislumbrá-las. Aí então vem o segundo passo.
- E qual é o segundo passo?
- É preciso entender muito bem. As idéias passam como ondas e ficam por pouco tempo. Em seguida saem e dão lugar a outras. Se você não escrever tudo, esquecerá. São poucas as que ficam guardadas. E, o que é pior, ela vai para mente sintonizada ou fica pelo espaço vagando até que alguém a sintonize. Algumas grandes idéias podem ter passado por nossas cabeças e ter até nos animado. Mas se deixamos de anotar nunca mais nos lembraremos dela e alguém, que anotá-la, vai colher os frutos. Também não adianta anotá-la e não fazer nada. Porque a idéia continuou pelo espaço e se alguém a sintonizar e executá-la antes, você já perdeu. É quando falamos: “eu também tive essa idéia, mas não a coloquei em prática. Agora ele está rico!”
- Já passei por isso.
- Todos já passamos. Isso quando não a ignoramos e falamos: “essa idéia alguém já deve ter tido!”. Com certeza se alguém não a teve, terá um dia. Alguém com atitude irá colocá-la em prática.
- Ótima idéia sua. Passarei a fazer o mesmo.
- Prefira a noite e a madrugada. É quando poucas mentes estão segurando idéias. Elas estarão todas soltas pelo ar e você terá várias opções.
- Estão todos dormindo, não é?
- Sim. Mas mesmo dormindo as idéias entram. Mas é muito difícil alguém se lembrar de um sonho e encará-lo como idéia. E elas passam muito rápido quando estamos dormindo. Entra idéia atrás de idéia e nada fica.
- Ótimo. Farei isso. Agora preciso ir. Já me vieram à mente algumas idéias sobre esse tipo de negócio. De venda de idéias. Preciso anotá-las.
- Idéias sobre venda de idéias? Como seria a idéia?
- Uma delas, a melhor, custa duzentos florins. Quer comprá-la?