sábado, 30 de janeiro de 2010

SILÊNCIO QUEBRADO


Raphael Montechiari 


         Ele já estava na cama, deitado, às oito da noite. Também em uma noite como essa ele teria que tentar dormir cedo. A janela estava escancarada na tentativa de atrair um pouco de vento. Qualquer brisa que passasse por ali seria bem-vindo naquela noite de quarta-feira. Estava tão quente que, mesmo nu e com a janela escancarada, a única coisa que o mantinha vivo era o suor. Era o que o salvava. Mas a janela aberta trazia mosquitos, que não se importavam com o calor e nem com a mistura de sangue e suor que consumiam. Se fartavam do sangue dele, enquanto podiam. E mesmo naquele inferno, normalmente, ele ainda conseguia dormir.
         A vila, no entanto, era muito silenciosa à noite. Só se ouviam rumores esporádicos, quando algum ventinho resolvia bater nas folhas das poucas árvores daquele maldito lugar. E mais nada. Há alguns tempos ainda se podiam ouvir cigarras, mas elas também deixaram a vila ou morreram. A verdade é que não mais cantavam por lá. E o calor era silencioso e com um gosto de cica, que deixava a boca colando. E ele lá, esperando o sono chegar.
         Ele morou toda sua vida ali, se é que aquilo era vida. Desde que seus pais se foram ele jurou a si mesmo que sumiria dali assim que pudesse. Mas durante todo o tempo em que  viveu ali, nunca havia se sentido tão só como naquela noite. Seu filho havia partido cedo, para Urais, levar o novilho para vender. Quando o compraram, ainda tinham a esperança de que ele cresceria e se tornaria um boi tão grande, que poderiam conseguir dinheiro para comprar uma casa em Tarracho ou até em Rio Dourado. Mas o animal estava definhando e, se não vendessem o mais rápido possível, não teriam nada. Os vizinhos já o olhavam e se preparavam para matá-lo e saciar a fome a qualquer momento. Mais uma semana ali e o perderiam para aqueles famintos. Vendendo-o conseguiriam ao menos um dinheirinho para alugar uma casinha em alguma outra cidade, onde se possa viver, e tentar recomeçar. O dinheiro daria para umas três ou quatro semanas. Mas era o que podiam fazer. Depois decidiriam o que fazer. Era a última esperança.
         O rapaz havia saído com o novilho  às duas da tarde e só voltaria às dez horas do dia seguinte. Então partiriam e ninguém mas ouviria falar deles. Era tudo que ele queria. Talvez um pouco mais de vento também não faria mal. O cheiro de madeira velha e de naftalina se misturavam com o cheiro de suor e com as coceiras. Eram os últimos lençóis limpos. A vila não tinha água para se desperdiçar com banhos ou lavagens de roupa. O único poço, ainda com água, era disputado por todos os moradores da vila e a água só poderia ser usada para beber ou cozinhar. Qualquer um que usasse para outro fim seria proibido de voltar ao poço. Então toda segunda quarta do mês, todos os moradores da vila partiam, como que em romaria, para São Pedro das Águas Claras. Eles iam para lavar suas roupas e tomar banho no rio límpido que cortava a cidade. Era uma viagem de dezessete horas de ida e dezenove de volta. E era o dia em que a cidade ficava deserta. Só ele ficou. Pela primeira vez. Até os velhos, doentes, incapacitados iam. Carregados ou se arrastando. Eles não permaneciam ali. Não sei se era pela necessidade de higiene ou pelo medo.
         Diziam que nessas noites, enquanto os moradores iam se banhar, os mortos vinham para a vila se banhar de vida. Passeavam  pela rua principal, se divertiam e tomavam conta das casas, relembrando o tempo em que eram vivos. Mas até então, ninguém havia ficado para confirmar se era ou não verdade. E ele se lembrava disso tudo. Deitado ali, sujo, suado e esperando a última noite naquela vila passar voando. Ele achou que dormiria rápido, como era de costume. Logo chegaria a manhã trazendo o seu menino, com o dinheiro do novilho. E partiriam para nunca mais voltar. Aquela vila cheirava a morte e quem ali fica, só está à espera dela. Não há mais o que se esperar de um lugar como aquele. Pra se ter uma idéia a parte que mais crescia na cidade era o cemitério. Já estava chegando até à praça e ia invadindo as casas abandonadas. O que ele mais queria era viver um pouco, coisa que não fazia há muito tempo, desde a época que lá havia pasto, água e muito gado. A plantação de milho abastecia até as cidades vizinhas e era uma vila que em breve se tornaria uma cidade. Mas em algum momento, que ele não se lembra, algo aconteceu e tudo passou a dar errado. A chuva não veio, o pasto queimou, o gado morreu e a água, dos poços, se secou. Ele tinha durado muito tempo ali. Precisava viver. E se aquilo ali já não era a morte, estava longe de ser vida.
         A casa era enorme. Quartos grandes e vazios. Cheios de calor e sem vento. Poeira e solidão preenchiam os outros cômodos da casa, inclusive a sala, logo na entrada. A porta da frente não fechava direito, por conta das dobradiças enferrujadas. Algumas janelas não mais abriam, pelo mesmo motivo. As torneiras estavam inutilizadas e eram simples enfeites. O banheiro guardava tábuas, uma grande mesa velha e tijolos. Sem água ele era inútil. Há cinco anos não corria água nos canos da vila. Antes disso a água era jogada para as caixas por bombas manuais. Recolhiam a água farta dos poços que toda casa tinha. Isso até eles secarem e só restar o poço da casa da senhora Dulce Marrone. Ela já havia morrido há uns vinte anos atrás e sua casa estava abandonada. Mas o poço ainda estava vivo e o único que tinha água na vila. Era o poço que todos dividiam.
         O sono simplesmente não chegava. Um ruído chegou aos seus ouvidos, após ter cortado todo o ar quente que tomava conta daquele ambiente. Era algo como uma batida. Mesmo de olhos fechados ele podia vê-las, tamanho era o silêncio da noite. Batidas empoeiradas, de madeira. E eram constantes. Seriam passos? Ele se arrepiou e se lembrou que não havia mais ninguém ali, além dele. Seus olhos estavam fechados e começou a se sentir gelado. Estava inerte para que, quem quer que se aproximasse, não o notasse ali. As batidas pareciam se manter em um mesmo lugar. Não, não eram passos. Passos se aproximam ou se distanciam. Aquela batida estava vindo sempre de uma mesma direção. A casa era todo mapeada em sua mente e ele sabia exatamente que a batida vinha do segundo quarto, depois do banheiro. A batida ecoava pelos corredores, entrava pela porta, refletia no espelho e vinha de encontro aos seus ouvidos, na cama. A janela, à sua direita, absorvia os restos do som e os lançava para fora. Sentiu calafrios ao se lembrar da história das almas. Será que estavam chegando? A batida continuava e ele tentava imaginar o que estariam fazendo. Talvez pregando as janelas e portas para que ele não fugisse quando o encontrassem. Sentiu um calafrio, o mais forte que já havia sentido na vida. Ainda de olhos fechados ele podia sentir que alguém o observava. E esse alguém estava sentado na cadeira ao lado da janela, onde estava esticada sua camisa, calças e cinto. Ele estremeceu em seguida. Uma senhora, corcunda, com um vestido azul remendado, esperando ele abrir os olhos para cantar uma canção triste. Talvez querendo saber o que um vivo fazia na noite dos mortos. Talvez uma menina, que havia morrido de tuberculose há muito tempo. Pálida e com os olhos fundos, ninando uma boneca de porcelana. Ele estava imóvel e não teve coragem de abrir os olhos. Na janela aberta já não entrava vento algum. A tensão o pressionava contra a cama. Ele sentiu falta dos mosquitos e sentiu que mais alguém o espiava pela janela, porque o vento não chegava. Eles se perguntavam o que ele fazia ali. A notícia já devia ter corrido por toda a vila e estavam querendo vê-lo.
         A batida parou por alguns instantes e recomeçou em outro ponto da casa. O sono estava longe de chegar. Ele começou a ouvir estalos. Sabia que se abrisse os olhos e encarasse uma alma morreria de medo. Na hora. E elas estavam ali. Naquele momento ele soube que aquele tinha sido o maior erro de sua vida. Talvez o último. Ter ficado ali, naquela noite, foi uma escolha insana. Poderia ter ido com o filho para Urais ou acompanhado, como fazia há anos, o povo da vila. Mas sua descrença de que algo acontecia naquelas noites, agora iria matá-lo.
         Algum tempo depois, ele notou que o vento havia voltado a bater e os mosquitos, para sua alegria, o picavam como antes. Será que haviam ido embora? Talvez os da janela. Mas na cadeira tinha alguém o vigiando. Com certeza! Um cheiro de fumo, bem de leve, surgiu no ar. Seria um velho, barbudo, com um chapéu de palha? Com seu cachimbo? Dando baforadas no ar? Sim. Um cheiro de fumo. Apertou os olhos com toda força e passou a prestar atenção na batida.
         O som pareceu ir ficando mais claro. Com a atenção voltada para a batida ele percebeu que não eram batidas. Era um som de algo sendo roído. Estava mais próximo e por isso ficou mais claro. Sim. Ratos! Na última semana ele havia matado alguns que apareceram, para comer o arroz que o governo havia mandado. Eles haviam sumido junto com a comida e voltaram com ela. E agora estariam roendo madeira para fugir dessa vila antes que a morte os apanhasse. Sim. Poderia abrir os olhos agora e rir de tudo isso. Contaria ao seu filho o medo que havia passado e como as histórias o influenciaram, a ponto de quase ter se borrado de medo por conta de alguns ratos. Todos ririam e eles estariam em Rio Dourado tomando chá de ervas e comendo torresmos, felizes. Teriam pelo menos uma lembrança bem humorada da vila maldita, que só tinha solidão, fome e tristeza. Então se preparou para abrir os olhos. Respirou fundo, relaxou a face e sentiu que o ar tinha parado de novo. Há algum tempo os mosquitos não o mordiam. Outro daquele calafrio percorreu seu corpo e a presença de alguém no quarto era certa. O barulho havia parado. A sensação de que a janela estava cheia de curiosos o olhando foi mais forte do que nunca. Estava estático e ouvia o seu coração batendo forte. Passou a ouvir passos calados, como de crianças descalças. Seco e agudo. E a porta rangeu. Ouviu uma troca de olhares. Tensionou novamente a face e fechou os olhos, apertando-os com toda a força. Fora isso, nada mais mexia nele. Passou a mentalizar os movimentos da próxima ação. Levantaria e voaria pela janela. Só iria parar de correr quando estivesse bem longe daquele maldito lugar. Novamente um silêncio. E, enfim, uma respiração à sua esquerda, bem perto da porta. Sentiu uma baforada no braço e estremeceu-se todo. Ele já se preparava para se levantar e correr, a toda velocidade, quando foi surpreendido por um ganido, vindo da mesma direção. Todo seu plano foi por água abaixo pois lhe faltou força nas pernas. Elas começaram a tremer e um grito de pavor fugiu pela sua boca. Suas mãos, como que protegendo o rosto, viraram-se na direção do barulho. Ele abriu os olhos e, ao seu lado, estava Bonachão, o maldito vira-latas da senhora Dulce Marrone, abanando o rabo para ele. Respirou aliviado e imaginou que quase havia morrido por causa de um cão. Imediatamente virou o rosto para a cadeira, que ficava ao lado da janela e nos viu lá. Eu, sentado na cadeira, fumando meu cachimbo e todos os outros na janela o espiando. Desde então ele passou a visitar a vila todas as segundas quartas do mês conosco.
     







sábado, 23 de janeiro de 2010

O VENDEDOR DE IDÉIAS


 Raphael Montechiari



- Bom dia. Pode chegar cliente.
- Bom dia. Olhei a placa na fachada e fiquei curioso. Como funciona seu negócio?
- Meu negócio? Vou te explicar, senhor. Sente-se aqui, por favor. Aí, não. Essa cadeira ainda está em testes. Sente-se nessa aqui. Isso.
- Então. Quais idéias você vende?
- Olha, eu vendo idéias de todos os tipos. Vou lhe dar alguns exemplos. Conhece aquela grande flor de lótus esculpida na praça? Fui eu que vendi a idéia para o escultor. O prefeito queria uma bela escultura na praça e nada do que ele sugeria agradou ao prefeito.
- Então ele te procurou?
- Sim. O garoto que entrega os folhetos tem feito muito bem o seu trabalho. O escultor me disse que já tinha gastado todo seu arsenal de idéias e já estava saturado do prefeito, quando resolveu me procurar, após receber um panfleto da minha loja.
- E o prefeito gostou da sua idéia?
- Sim. Assim que dei as opções das idéias para o escultor ele escolheu essa. De cara. E adorou! Me pagou com gosto e disse ter certeza que o prefeito iria adorar a idéia. E foi o que aconteceu.
- Muito bom. Mas o quê?
- Outras idéias?
- É. Mas que outras idéias você vendeu?
- Já reparou que de uns tempos para cá não se ouvem mais latidos de cachorros? Fui eu quem resolveu esse impasse. Estava havendo uma guerra entre os moradores que tinham cães e os outros que não suportavam mais os latidos. Apareceram alguns cães mortos e alguns vizinhos mortos em seguida. Virou caso de polícia. Foi uma verdadeira guerra.
- Sim. Ouvi falar.
- Então. O prefeito já tinha tentado propor uma proibição para cães, mas não foi bem sucedido. O partido pró-cães não deixou passar essa proposta e o prefeito foi ameaçado de morte. Depois propôs um local isolado para os cães dormirem à noite, bem longe da cidade. Também não foi bem sucedido. Os donos queriam eles juntos, além de quê alguns cães serviam para vigiar as casas durante a noite. O prefeito ainda tentou criar uma série de resoluções como doar protetores auriculares para a população e até construir um grande hotel isolado para quem estava sendo incomodado. Também não deu certo. O partido contra-cães não deixou passar as propostas e o prefeito foi ameaçado de morte.
- Que situação!
- Sim. Então o prefeito teve a melhor idéia que poderia ter tido: veio me procurar.
- E então?
- O prefeito quis ouvir todas as idéias e pagou por todas elas. Até porque as primeiras não eram tão boas assim.
- E qual foi a escolhida?
- A prefeitura doa soníferos para os cães que não são de guarda e os donos devem dar aos cães toda noite. Caso contrário uma multa é aplicada ao dono. Para os cães de guarda, que precisam estar alerta durante à noite, foi dada a seguinte solução: cortar as cordas vocais do animal. Uma cirurgia rápida, indolor e segura. Assim os moradores pró-cães poderiam ter seus amigos e guardas, sem incomodar aos outros vizinhos.
- Bravo! Bravíssimo! E quanto te pagam?
- Depende da idéia. Quando me passam o que querem eu penso em várias soluções e, de acordo com a qualidade da idéia, o preço é maior.
- Muito bom. Você conta as idéias e eles escolhem a melhor, cada uma com um preço.
- Nada disso! Eu escrevo as idéias em papéis diferentes e anoto o preço de cada uma. Assim, de acordo com meu julgamento, eu ponho os preços nas idéias e o cliente escolhe qual quiser. Mas só leio a que eles comprarem. Assim não corro o risco de dizer as idéias e o cliente não pagar. Ninguém come a maçã e decide depois se vai pagar ou não. Estamos numa cidade cheia de malandros e é preciso ser mais malandro pra se dar bem.
- É verdade. Mas e se a idéia não agradar.
- Eu vendo as idéias. Se gostar ou não é um risco que se corre. Ali está o cartaz: não aceitamos devoluções. Porque depois vem um malandro, diz que não gosta e não paga. Aí você vai ver ele colocando ela em prática. Comigo não! Quer a idéia? Pague que eu a digo. Senão não tem negócio.
- Está certo. Mas me diga: como tem tantas idéias assim?
- Essa foi uma idéia que tive há onze anos atrás e mudou minha vida. É claro que é o segredo do meu sucesso e não passaria pra ninguém se eu não estivesse me aposentando. Mas não vendo barato.
- Eu pago quanto quiser.
- Então eu quero mil e quinhentos florins mais o seu cavalo que está ali na porta. Mas já sabe. Não aceito devolução. Se não te servir, lamento muito.
- Tudo bem. Aqui está o dinheiro. E o cavalo já é seu.
- Heleno!
- Sim senhor.
- Leve o cavalo para o curral. Agora ele é meu.
- Sim senhor.
- Bem. Vejamos: cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos, trezentos, quatrocentos e quinhentos. Certinho. Tenho que conferir tudo. Como já disse, essa cidade está cheia de malandros.
- E então?
- Olha. Vou te explicar como funciona: as idéias vêm na cabeça de todos nós. É como uma onda de rádio em uma freqüência definida. Se ficarmos pensando em um determinado assunto é porque estamos sintonizando em uma determinada freqüência. E todas as idéias daquela freqüência, ou seja, daquele assunto, vão entrar e vamos vislumbrá-las. Aí então vem o segundo passo.
- E qual é o segundo passo?
- É preciso entender muito bem. As idéias passam como ondas e ficam por pouco tempo. Em seguida saem e dão lugar a outras. Se você não escrever tudo, esquecerá. São poucas as que ficam guardadas. E, o que é pior, ela vai para mente sintonizada ou fica pelo espaço vagando até que alguém a sintonize. Algumas grandes idéias podem ter passado por nossas cabeças e ter até nos animado. Mas se deixamos de anotar nunca mais nos lembraremos dela e alguém, que anotá-la, vai colher os frutos. Também não adianta anotá-la e não fazer nada. Porque a idéia continuou pelo espaço e se alguém a sintonizar e executá-la antes, você já perdeu. É quando falamos: “eu também tive essa idéia, mas não a coloquei em prática. Agora ele está rico!”
- Já passei por isso.
- Todos já passamos. Isso quando não a ignoramos e falamos: “essa idéia alguém já deve ter tido!”. Com certeza se alguém não a teve, terá um dia. Alguém com atitude irá colocá-la em prática.
- Ótima idéia sua. Passarei a fazer o mesmo.
- Prefira a noite e a madrugada. É quando poucas mentes estão segurando idéias. Elas estarão todas soltas pelo ar e você terá várias opções.
- Estão todos dormindo, não é?
- Sim. Mas mesmo dormindo as idéias entram. Mas é muito difícil alguém se lembrar de um sonho e encará-lo como idéia. E elas passam muito rápido quando estamos dormindo. Entra idéia atrás de idéia e nada fica.
- Ótimo. Farei isso. Agora preciso ir. Já me vieram à mente algumas idéias sobre esse tipo de negócio. De venda de idéias. Preciso anotá-las.
- Idéias sobre venda de idéias? Como seria a idéia?
- Uma delas, a melhor, custa duzentos florins. Quer comprá-la?



sábado, 16 de janeiro de 2010

VIZINHOS

Raphael Montechiari


Sempre agi da melhor maneira possível para poder conhecer o Paraíso. Sempre tratei bem todos os meus tios e minha avó Denize Valdachio. Apesar das reclamações dela sobre as rosas. Sempre que íamos visitá-la, o jardim estava cheio delas. Vermelhas, rosas, amarelas e brancas. E todas deliciosas. Comia quantas eu podia até ela descobrir e me bater. Batia com uma varinha de goiabeira. E quando eu a via saindo da porta já gritando “Vou te pegar, seu moleque!” eu comia o máximo de rosas que podia e não parava. Ela vinha em passos lentos pelo caminho entre as roseiras e desviava um pouco a direção para arrancar um pequeno galho da goiabeira. Então voltava à rota anterior, já retirando as folhas, deixando a vara limpinha e lisa para que quando entrasse em contato com minhas pernas branquelas, não deixasse nenhuma dúvida de que ela me havia feito sentir dor. E eu continuava, cada vez mais acelerado, a comê-las. Estático. Só esperando ela chegar e me punir com as varadas. E como doía!

Isso não me levaria para o inferno. Mas o desejo de matar o senhor Juliano Carreras me levaria direto para lá. Minha mãe dizia que só de pensar certos pecados eles já estavam sendo cometidos. E eu pensava muito nesse pecado. Fui várias e várias vezes me confessar para poder me livrar dele. Mas no dia seguinte, esse mesmo pecado já acordava na minha cabeça. Então, pela manhã, ia até o padre me confessar de novo. E na outra, e na outra e na outra. Até que o padre me disse que eu deveria contar para ele quem eu queria matar. Talvez para tentar livrar o Senhor Juliano Carreras. Desconversei e disse que não era ninguém. A vontade de matá-lo foi maior que a de ir para o Paraíso. E desde então só tenho pensado nisso.
Desde que ganhei meu saxofone fui sempre muito dedicado. Bem antes de ganhá-lo minha mãe havia me presenteado com cinco discos de Jazz que eram do meu pai. Ele tinha largado minha mãe para ir morar com outra mulher em uma cidade bem distante. E os discos ficaram. E eu os herdei. Charlie Parker era o melhor deles. O disco “The Complete Savoy Sessions” tocava diariamente na minha vitrola, que na verdade não era minha, mas da minha mãe. Mas eu a chamava de minha porque todas as coisas que eram da minha mãe ela dizia que eram minhas também. Mas as minhas não eram dela. Os discos eu não emprestava para ela ouvir, apesar de nunca ter me pedido. O saxofone também não a deixaria tocar. Primeiro porque não sabia. E segundo porque era meu e eu não iria dividi-lo com ninguém. Nem mesmo com minha mãe.
O fato é que o Charlie Parker me levou a treinar diariamente o saxofone. Eu tocava todas as músicas do disco. Do início ao fim. Os temas, improvisos e até os ruídos mais discretos que as chaves do saxofone faziam na gravação. A interpretação dele era algo divino. O Charlie Parker deve ter ido para o Paraíso. Talvez ele tenha podido estudar seu saxofone sem ter ninguém para atrapalhá-lo. Talvez ele tenha até comido todo o roseiral da avó, mas ele podia estudar o solo de “Donna Lee” e não ser perturbado pelo vizinho. E por isso ele não tenha querido matar ninguém. Talvez não.

O Senhor Juliano Carreras morava no apartamento ao lado do meu. Após eu ter seguido a carreira de músico e ter começado a tocar na banda da cidade, passei a morar sozinho num apartamento e comecei a receber vários convites de músicos e cantoras famosas. Rosa Lucinha foi uma delas. Esteve pessoalmente no meu apartamento para me falar do seu desejo de me levar para tocar com ela. Rosa Lucinha era a cantora mais famosa da época e tinha todos aqueles seguranças quando me chamou lá da entrada. Subiu a escada do pequeno prédio em que eu morava, no terceiro andar. E todos os vizinhos admiravam em que ponto eu havia chegado ao ter visitas tão ilustres. Mas eu tive que recusar o convite de Rosa Lucinha, apesar de ter percebido que os seguranças dela não gostaram muito da minha decisão.
O fato é que o Senhor Juliano Carreras não gostava de ser perturbado pelo som do meu saxofone. E eu precisava estudar mais do que nunca, já que agora era músico profissional e tocava na banda da minha cidade, além de ter sido convidado por Rosa Lucinha para acompanhá-la em sua turnê nacional e internacional. Eu recusei, pois queria fazer o teste para entrar na Orquestra dos Fuzileiros Navais. Esse era meu objetivo principal. Seria um músico militar, com todos aqueles uniformes e um chapéu exclusivo da Orquestra dos Fuzileiros Navais. As músicas que eles tocavam eram todas muito bonitas, mas quando eu entrasse iríamos tocar só as músicas do Charlie Parker. Inclusive as músicas do outro disco que eu havia visto na loja. Eu teria mais dinheiro e poderia comprar o outro disco do Charlie Parker e treinar todas elas. E toda a Orquestra dos Fuzileiros Navais iria executá-las.
Mas para isso eu precisava estudar muito. Acordava às seis da manhã, tomava meu café e começava a estudar, música por música, solo por solo. Tocava o dia inteiro até escurecer, quando minha barriga me lembrava que eu precisava comer. Nos finais de semana ia tocar na banda da minha cidade para ter dinheiro para pagar meu aluguel, pois ninguém pode viver sem trabalhar. Minha mãe me ensinou isso muito bem e ainda por cima comprou o outro disco do Charlie Parker para me dar no Natal. Eu ouvi seiscentas e vinte e duas vezes sem parar e me apaixonei pelo disco. Naqueles dias eu não dormi, nem comi e nem fui tocar na banda da cidade. Só ouvi o disco por seiscentas e vinte e duas vezes. O Senhor Juliano Carreras provavelmente não gostava do Charlie Parker porque, depois disso, começou a me empestear a mente. Me disse para estudar meu saxofone na puta que pariu e ameaçou quebrar minha vitrola. Minha mãe, nessa época, já havia deixado de vez a vitrola comigo, pois não ouvia nada nela. A vitrola também já tinha sido do meu pai que, quando largou minha mãe e foi morar numa cidade bem distante com outra mulher, a deixou em casa. Acho que não gostava muito dela. Eu jamais deixaria uma vitrola e cinco discos tão bons quanto aqueles para ir morar tão distante assim. Ele poderia ter ficado conosco e assim eu o ensinaria a tocar saxofone e mostraria os principais segredos de Charlie Parker. Também o levaria para me assistir tocando na banda da cidade e tenho certeza que ele não iria se arrepender.

Eu passei a ter que ir para o Morro da Consolação estudar. Era um morro bem alto de onde dava para ver toda a cidade. Ele era chamado de Morro da Consolação porque há muito tempo atrás havia ali uma igreja que era da virgem da Consolação. Mas durante a revolução destruíram-na e atearam fogo nela e nas casas vizinhas. Desde então ninguém mais morou por lá e retiraram os escombros para que ninguém mais se lembrasse desse dia. Mas todo mundo se lembra porque até hoje o chamam de Morro da Consolação. E era lá que eu tocava meu saxofone. Parecia que eu havia desaprendido tudo. Estava bem destreinado e acho que quando tocava com o Charlie Parker eu ia bem melhor. Também ia bem quando tocava com a banda da cidade. Mas ali sentado, sozinho, parecia não conseguir me concentrar e não saía nada de bom. Só que eu precisava estudar. O teste para a Orquestra dos Fuzileiros Navais seria em breve e eu precisava estar preparado. E como eu não podia mais estudar em casa, pois havia enfurecido o Senhor Juliano Carreras, teria que estudar por ali mesmo. E assim foi durante treze dias. A cidade toda ouvia o som do saxofone, mas sem saber de onde vinha. Acredito que alguns achavam que seria uma dádiva de Deus para confortá-los pelo sentimento de perda da Igreja da Consolação.
As músicas que eu tocava ainda estavam longe de serem aquelas que eu tocava quando estudava em casa. E agora eu ouvia muito baixo os discos em casa para não perturbar o Senhor Juliano Carreras. O problema é que ele chegava de madrugada, bêbado e com umas negas, que falavam alto e riam o tempo todo. Depois ficavam de gritarias e pulando em cima da cama, fazendo-a ranger tão alto que me tirava o sono. E eu precisava acordar cedo no outro dia para tomar meu café, pegar meu saxofone e subir o Morro da Consolação para estudar. Por várias vezes eu suportei aquela situação até que um dia de manhã bati em sua porta, depois de uma noite de baderna, e revelei para ele minha insatisfação com a situação, lembrando-o ainda que eu estava estudando no Morro da Consolação somente para não o incomodar mais. Na verdade ele nem me deixou chegar na metade do que eu queria dizer. Me mandou para a puta que pariu por acordá-lo tão cedo e disse que se eu voltasse a incomodá-lo, me daria uma porrada dentro da cara.
Seu Juliano era bem grande, não muito forte, mas com braços e pernas compridas e ossudas. Já estava um pouco careca e tinha uma cara de bravo. Quando me ameaçou e fechou a porta na minha cara eu decidi não incomodá-lo mais. Uma porrada dentro da cara de um sujeito grande como ele deveria machucar pra cacete. Então achei por bem ir dormir no Morro da Consolação todas as vezes que ele fizesse suas farras. Fiquei um pouco assustado em saber que ele iria para o inferno. E ele com certeza iria, pois uma pessoa que dá uma porrada dentro da cara da outra não teria outro fim. Minha mãe já havia me dito que só de pensar certos pecados você já os havia cometido. Passei a ter muito medo dele depois que esses pensamentos me visitaram. Eu havia conhecido uma pessoa que iria para o inferno e que conheceria o demônio.
Não gosto muito de pensar essas coisas porque me deixam confuso e nervoso. Porém refletindo um pouco mais, descobri que meu próprio pai iria para lá também. O padre já havia dito na missa que o adultério é pecado. E quando meu pai fugiu com outra mulher para uma cidade muito distante, ele cometeu adultério. E ele está mais perto do inferno do que o Senhor Juliano Carreras. Ainda largou uma vitrola, cinco discos e sua família para trás.

O fato é que numa certa tarde de estudos no Morro da Consolação o tempo fechou rápido e, antes que eu me desse conta, caiu um aguaceiro tão pesado que eu nunca tinha visto igual. Como eu não tinha a mala para guardar o meu saxofone, tentei escondê-lo debaixo da minha camisa. Mas ela já estava toda ensopada e vi escorrer água por dentro dele e por todas as suas chaves. Então corri o mais depressa que pude. Passei por debaixo da cerca de arame farpado e peguei a pequena trilha que levava de volta à cidade. A trilha estava muito molhada e escorregadia e, na primeira descida, eu caí e meu saxofone caiu embaixo de mim deslizando pelo barranco. A chuva não dava trégua e nem se podia ver a cidade de tão branca que estava a vista. Era muita água e meu saxofone agora havia caído numa grande poça de lama. Tive que descer pelo barranco segurando pelas moitas de capim até ter altura suficiente para saltar. Consegui resgatá-lo e cobri-lo novamente com minha camisa. Ao chegar em casa notei que haviam quebrado quatro chaves do saxofone e que eu deveria voltar para achar os pedaços. Fiquei até escurecer sob aquela chuva, procurando no barranco do Morro da Consolação pelas quatro chaves do saxofone, mas não encontrei nada. Voltei por mais nove dias seguidos e passei os nove dias inteiros procurando pelas quatro chaves que haviam quebrado. Por fim, descobri que não haveria jeito de encontrá-las e descobri qual seria a solução: eu tinha que matar o Senhor Juliano Carreras.

VIZINHOS

Raphael Montechiari


Sempre agi da melhor maneira possível para poder conhecer o Paraíso. Sempre tratei bem todos os meus tios e minha avó Denize Valdachio. Apesar das reclamações dela sobre as rosas. Sempre que íamos visitá-la, o jardim estava cheio delas. Vermelhas, rosas, amarelas e brancas. E todas deliciosas. Comia quantas eu podia até ela descobrir e me bater. Batia com uma varinha de goiabeira. E quando eu a via saindo da porta já gritando “Vou te pegar, seu moleque!” eu comia o máximo de rosas que podia e não parava. Ela vinha em passos lentos pelo caminho entre as roseiras e desviava um pouco a direção para arrancar um pequeno galho da goiabeira. Então voltava à rota anterior, já retirando as folhas, deixando a vara limpinha e lisa para que quando entrasse em contato com minhas pernas branquelas, não deixasse nenhuma dúvida de que ela me havia feito sentir dor. E eu continuava, cada vez mais acelerado, a comê-las. Estático. Só esperando ela chegar e me punir com as varadas. E como doía!

Isso não me levaria para o inferno. Mas o desejo de matar o senhor Juliano Carreras me levaria direto para lá. Minha mãe dizia que só de pensar certos pecados eles já estavam sendo cometidos. E eu pensava muito nesse pecado. Fui várias e várias vezes me confessar para poder me livrar dele. Mas no dia seguinte, esse mesmo pecado já acordava na minha cabeça. Então, pela manhã, ia até o padre me confessar de novo. E na outra, e na outra e na outra. Até que o padre me disse que eu deveria contar para ele quem eu queria matar. Talvez para tentar livrar o Senhor Juliano Carreras. Desconversei e disse que não era ninguém. A vontade de matá-lo foi maior que a de ir para o Paraíso. E desde então só tenho pensado nisso.
Desde que ganhei meu saxofone fui sempre muito dedicado. Bem antes de ganhá-lo minha mãe havia me presenteado com cinco discos de Jazz que eram do meu pai. Ele tinha largado minha mãe para ir morar com outra mulher em uma cidade bem distante. E os discos ficaram. E eu os herdei. Charlie Parker era o melhor deles. O disco “The Complete Savoy Sessions” tocava diariamente na minha vitrola, que na verdade não era minha, mas da minha mãe. Mas eu a chamava de minha porque todas as coisas que eram da minha mãe ela dizia que eram minhas também. Mas as minhas não eram dela. Os discos eu não emprestava para ela ouvir, apesar de nunca ter me pedido. O saxofone também não a deixaria tocar. Primeiro porque não sabia. E segundo porque era meu e eu não iria dividi-lo com ninguém. Nem mesmo com minha mãe.
O fato é que o Charlie Parker me levou a treinar diariamente o saxofone. Eu tocava todas as músicas do disco. Do início ao fim. Os temas, improvisos e até os ruídos mais discretos que as chaves do saxofone faziam na gravação. A interpretação dele era algo divino. O Charlie Parker deve ter ido para o Paraíso. Talvez ele tenha podido estudar seu saxofone sem ter ninguém para atrapalhá-lo. Talvez ele tenha até comido todo o roseiral da avó, mas ele podia estudar o solo de “Donna Lee” e não ser perturbado pelo vizinho. E por isso ele não tenha querido matar ninguém. Talvez não.

O Senhor Juliano Carreras morava no apartamento ao lado do meu. Após eu ter seguido a carreira de músico e ter começado a tocar na banda da cidade, passei a morar sozinho num apartamento e comecei a receber vários convites de músicos e cantoras famosas. Rosa Lucinha foi uma delas. Esteve pessoalmente no meu apartamento para me falar do seu desejo de me levar para tocar com ela. Rosa Lucinha era a cantora mais famosa da época e tinha todos aqueles seguranças quando me chamou lá da entrada. Subiu a escada do pequeno prédio em que eu morava, no terceiro andar. E todos os vizinhos admiravam em que ponto eu havia chegado ao ter visitas tão ilustres. Mas eu tive que recusar o convite de Rosa Lucinha, apesar de ter percebido que os seguranças dela não gostaram muito da minha decisão.
O fato é que o Senhor Juliano Carreras não gostava de ser perturbado pelo som do meu saxofone. E eu precisava estudar mais do que nunca, já que agora era músico profissional e tocava na banda da minha cidade, além de ter sido convidado por Rosa Lucinha para acompanhá-la em sua turnê nacional e internacional. Eu recusei, pois queria fazer o teste para entrar na Orquestra dos Fuzileiros Navais. Esse era meu objetivo principal. Seria um músico militar, com todos aqueles uniformes e um chapéu exclusivo da Orquestra dos Fuzileiros Navais. As músicas que eles tocavam eram todas muito bonitas, mas quando eu entrasse iríamos tocar só as músicas do Charlie Parker. Inclusive as músicas do outro disco que eu havia visto na loja. Eu teria mais dinheiro e poderia comprar o outro disco do Charlie Parker e treinar todas elas. E toda a Orquestra dos Fuzileiros Navais iria executá-las.
Mas para isso eu precisava estudar muito. Acordava às seis da manhã, tomava meu café e começava a estudar, música por música, solo por solo. Tocava o dia inteiro até escurecer, quando minha barriga me lembrava que eu precisava comer. Nos finais de semana ia tocar na banda da minha cidade para ter dinheiro para pagar meu aluguel, pois ninguém pode viver sem trabalhar. Minha mãe me ensinou isso muito bem e ainda por cima comprou o outro disco do Charlie Parker para me dar no Natal. Eu ouvi seiscentas e vinte e duas vezes sem parar e me apaixonei pelo disco. Naqueles dias eu não dormi, nem comi e nem fui tocar na banda da cidade. Só ouvi o disco por seiscentas e vinte e duas vezes. O Senhor Juliano Carreras provavelmente não gostava do Charlie Parker porque, depois disso, começou a me empestear a mente. Me disse para estudar meu saxofone na puta que pariu e ameaçou quebrar minha vitrola. Minha mãe, nessa época, já havia deixado de vez a vitrola comigo, pois não ouvia nada nela. A vitrola também já tinha sido do meu pai que, quando largou minha mãe e foi morar numa cidade bem distante com outra mulher, a deixou em casa. Acho que não gostava muito dela. Eu jamais deixaria uma vitrola e cinco discos tão bons quanto aqueles para ir morar tão distante assim. Ele poderia ter ficado conosco e assim eu o ensinaria a tocar saxofone e mostraria os principais segredos de Charlie Parker. Também o levaria para me assistir tocando na banda da cidade e tenho certeza que ele não iria se arrepender.

Eu passei a ter que ir para o Morro da Consolação estudar. Era um morro bem alto de onde dava para ver toda a cidade. Ele era chamado de Morro da Consolação porque há muito tempo atrás havia ali uma igreja que era da virgem da Consolação. Mas durante a revolução destruíram-na e atearam fogo nela e nas casas vizinhas. Desde então ninguém mais morou por lá e retiraram os escombros para que ninguém mais se lembrasse desse dia. Mas todo mundo se lembra porque até hoje o chamam de Morro da Consolação. E era lá que eu tocava meu saxofone. Parecia que eu havia desaprendido tudo. Estava bem destreinado e acho que quando tocava com o Charlie Parker eu ia bem melhor. Também ia bem quando tocava com a banda da cidade. Mas ali sentado, sozinho, parecia não conseguir me concentrar e não saía nada de bom. Só que eu precisava estudar. O teste para a Orquestra dos Fuzileiros Navais seria em breve e eu precisava estar preparado. E como eu não podia mais estudar em casa, pois havia enfurecido o Senhor Juliano Carreras, teria que estudar por ali mesmo. E assim foi durante treze dias. A cidade toda ouvia o som do saxofone, mas sem saber de onde vinha. Acredito que alguns achavam que seria uma dádiva de Deus para confortá-los pelo sentimento de perda da Igreja da Consolação.
As músicas que eu tocava ainda estavam longe de serem aquelas que eu tocava quando estudava em casa. E agora eu ouvia muito baixo os discos em casa para não perturbar o Senhor Juliano Carreras. O problema é que ele chegava de madrugada, bêbado e com umas negas, que falavam alto e riam o tempo todo. Depois ficavam de gritarias e pulando em cima da cama, fazendo-a ranger tão alto que me tirava o sono. E eu precisava acordar cedo no outro dia para tomar meu café, pegar meu saxofone e subir o Morro da Consolação para estudar. Por várias vezes eu suportei aquela situação até que um dia de manhã bati em sua porta, depois de uma noite de baderna, e revelei para ele minha insatisfação com a situação, lembrando-o ainda que eu estava estudando no Morro da Consolação somente para não o incomodar mais. Na verdade ele nem me deixou chegar na metade do que eu queria dizer. Me mandou para a puta que pariu por acordá-lo tão cedo e disse que se eu voltasse a incomodá-lo, me daria uma porrada dentro da cara.
Seu Juliano era bem grande, não muito forte, mas com braços e pernas compridas e ossudas. Já estava um pouco careca e tinha uma cara de bravo. Quando me ameaçou e fechou a porta na minha cara eu decidi não incomodá-lo mais. Uma porrada dentro da cara de um sujeito grande como ele deveria machucar pra cacete. Então achei por bem ir dormir no Morro da Consolação todas as vezes que ele fizesse suas farras. Fiquei um pouco assustado em saber que ele iria para o inferno. E ele com certeza iria, pois uma pessoa que dá uma porrada dentro da cara da outra não teria outro fim. Minha mãe já havia me dito que só de pensar certos pecados você já os havia cometido. Passei a ter muito medo dele depois que esses pensamentos me visitaram. Eu havia conhecido uma pessoa que iria para o inferno e que conheceria o demônio.
Não gosto muito de pensar essas coisas porque me deixam confuso e nervoso. Porém refletindo um pouco mais, descobri que meu próprio pai iria para lá também. O padre já havia dito na missa que o adultério é pecado. E quando meu pai fugiu com outra mulher para uma cidade muito distante, ele cometeu adultério. E ele está mais perto do inferno do que o Senhor Juliano Carreras. Ainda largou uma vitrola, cinco discos e sua família para trás.

O fato é que numa certa tarde de estudos no Morro da Consolação o tempo fechou rápido e, antes que eu me desse conta, caiu um aguaceiro tão pesado que eu nunca tinha visto igual. Como eu não tinha a mala para guardar o meu saxofone, tentei escondê-lo debaixo da minha camisa. Mas ela já estava toda ensopada e vi escorrer água por dentro dele e por todas as suas chaves. Então corri o mais depressa que pude. Passei por debaixo da cerca de arame farpado e peguei a pequena trilha que levava de volta à cidade. A trilha estava muito molhada e escorregadia e, na primeira descida, eu caí e meu saxofone caiu embaixo de mim deslizando pelo barranco. A chuva não dava trégua e nem se podia ver a cidade de tão branca que estava a vista. Era muita água e meu saxofone agora havia caído numa grande poça de lama. Tive que descer pelo barranco segurando pelas moitas de capim até ter altura suficiente para saltar. Consegui resgatá-lo e cobri-lo novamente com minha camisa. Ao chegar em casa notei que haviam quebrado quatro chaves do saxofone e que eu deveria voltar para achar os pedaços. Fiquei até escurecer sob aquela chuva, procurando no barranco do Morro da Consolação pelas quatro chaves do saxofone, mas não encontrei nada. Voltei por mais nove dias seguidos e passei os nove dias inteiros procurando pelas quatro chaves que haviam quebrado. Por fim, descobri que não haveria jeito de encontrá-las e descobri qual seria a solução: eu tinha que matar o Senhor Juliano Carreras.

sábado, 9 de janeiro de 2010

AMANCIO PENSADOR



  Raphael Montechiari

           - Oi Amâncio. Como vai? Quem bom que veio!
            - Olá, Sebastião Conselheiro. Realmente foi uma tristeza e o mínimo que podemos fazer é vir aqui compartilhar nossa dor com a família.
            - É. Uma tristeza mesmo! Amâncio. Pode ficar à vontade. Pegue umas torradas e um chazinho ali. Vou aqui falar com Dona Renilda Teixeira.
            - Não se preocupe comigo, Sebastião Conselheiro. Daqui a pouco me sirvo.
            - Fique à vontade.
            É muito feio ficar fingindo, Sebastião Conselheiro. Você queria o velho morto há muito tempo e agora fica fazendo cena aí.
            - Olá Senhora Glorinha. Meus sentimentos.
            - Oi Amâncio. Obrigada.
            Essa aí é a única que realmente gostava do velho. E cuidou dele até o último momento. Deu banho, deu remédio e deu amor a ele durante a vida toda. Mas a coitadinha nem sabe que...
            - Amââââncio.
            - Olá Seu Cláudio Dumas.
            - Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?
            - Não. Não soube.
            - Pois é, Amâncio. Eu estava fazendo uma visita à tia Glorinha e fui vê-lo. Ele estava meio acordado e parecia lúcido. Me disse algumas coisas sobre literatura, que não entendi muito bem. Depois me perguntou sobre minha mãe e eu o lembrei que ela já havia partido.
            - Nossa. Ele nem se lembrava? Coitadinho.
            - Nem lembrava. Mas já estava nas últimas, né? Depois te conto mais. A Lisandra chegou.
            Esse fede demais. Ô homenzinho pra ter cheiro de inhaca! Olha lá. “ Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?” Deve ter falado isso pra todo mundo. Que marola! Eu já tava ficando sem ar. Ainda mais de paletó. O velho deve ter morrido de falta de ar! Vou encostar num canto que daqui a pouco passam uns canapés.
            - Olá, Dona Esmeralda. Como vai?
            - Tudo bem, meu filho.
            - Tudo indo, né Dona Esmeralda?
            - É meu filho. Mas a vida é assim mesmo. A única coisa que não falha é a morte. Chega pra todo mundo.
            - É verdade.
            Vou ter que esperar mais um pouquinho pra me despedir do velho. Ele era boa gente! Não gosto de ficar me lembrando dele, mas preciso arrumar um jeito de ficar mais triste e até de chorar, se possível. Ele merece algumas lágrimas.
            - Judite Gouveia! Como é que você tá?
            - Oi Amâncio.
            - E a sua filhinha. Está lindinha.
            - É. Já está uma mocinha. Fala oi com o Tio Amâncio.
            - Oi tio Amâncio. Fiz “isso”de anos.
            - Que bonitinha! Quatro aninhos?
            - É, né filhinha? Amâncio, você viu a cara-de-pau da Lurdinha Nassar, sentada ali na entrada?
            - O quê? Não tinha reparado, menina. Mas é mesmo uma cara-de-pau!
            - Dá vontade de ir lá e baixar o barraco com ela. Mas o velho não merece.
            - E ela tá chorando o quê? Roubou tudo que o velho tinha e agora tá aí. Deve estar com medo de assombração.
            - Nem me fale, Amâncio! Essa noite eu tive um sonho terrível! Sonhei que o velho estava num bote, com a Julinha nas costas, como ele costumava fazer. Aí caíram os dois do bote. Quando acordei vi um monte de água no chão. Acho que ele voltou pra brincar com a minha menina.
            - Que isso, Judite! Onde já se viu morto voltar?
            - Quê? Já ouvi vários relatos. E a água? De onde veio?
            - Tira essas coisas da cabeça, mulher! É que você estava impressionada.
            - Impressionada....
            - Vou ao banheiro.
            Desconjuro! E eu lá vou saber se não foi ele mesmo que quis dar um passeio com a menina e molhou a casa toda? Desconjuro credo!
            - Com licença, querida! Licencinha, garotinho. Olá Dona Ruth. Meus sentimentos.
            - Obrigado, Amâncio.
            - Com licença, jovens.
            Quanta gente! Nessa cidade morta, funeral é evento que não se falta. E que banheiro mal cuidado! Espelho quebrado. Gente porca! A fechadura tá agarrando. Fecha, maldita! Ai, caralho! Quase prendi o dedo nesta porra! Aaaaaaaaaa!! Como é bom mijar! Aaaaaaaaiii! Que alívio! Já tem gente forçando a porta. Aquela cara-de-pau teve a coragem de vir. Que coragem! Vai dar confusão no enterro do velho. Acho que vou avisar pra ela sumir daqui, antes que dê merda!
            - Já vou! Não tem educação não? Que coisa!
            Torneira que não fecha direito! Vai ficar escorrendo água. O que é que eu posso fazer?
            - Calma. Não tá vendo que tem gente?
            - É que eu tô apertada!
            - Sua mão devia te ensinar que tem que esperar sua vez. Quem tá lá dentro tá apertado também!
            - Desculpe. Me deixa entrar logo!
            - Essas crianças...
            Não têm um pingo de educação. Igual à mãe. Tomara que não vire uma piranha, como ela. Dá pra qualquer um. Olha ela lá. Mas é gostosa a filha da puta, né? Se insinuando pro Devair Toledo. Deve estar comendo ela direto! Gracinha Nunes. Até o nome é de puta!
            - Bom dia, Dona Cleuza.
            - Bom dia, Amancio. Que tristeza, né?
            - É sim, dona Cleuza. Mas Deus sabe o que faz.
            - É. Já era hora dele, né?
            - Era sim, dona Cleuza.
            - E o seu mais velho? Não veio?
            - Veio não. Ficou com a mãe em casa. Ela não gosta muito de enterros.
            - Ah, sei. Ninguém gosta, né? Mas quem somos nós pra contestar os desígnios de Deus, né meu filho?
            - É sim, dona Cleuza. E o padre, ainda não chegou?
            - Já sim. Está comendo umas torradinhas com chá.
            - Ótima idéia. Vou ver se como alguma coisa também.
            - Come sim, Amâncio.
            Olha lá a safada da Gracinha. Até se esqueceu que está no funeral do tio. Mostrando os peitos pra quem quiser ver. E tá doida pra dar hoje. Só que escolheu o mais lerdo. Se ela tivesse conseguido ficar vinte minutos sozinha eu já teria chegado nela e aí ela ia ver. Mas não consegue ficar um minuto sem dar.
            - O que foi, Judite? Chora não!
            - Estou lembrando do velho. Ele me levava pra passear no parque e sempre comprava presentes pra todos nós.
            - É mesmo. Se lembra do dia da ventania?
            - Claro. Ele estava com...
            Como eu vou fazer pra sair com ela daqui sem que ninguém perceba? Primeiro tenho que tirar o Devair Toledo dali senão, daqui a pouco, mesmo ele sendo lerdo, ela vai pegar ele pelo pescoço e arrastá-lo para um quarto desses.
            - ... e o chapéu de todo mundo voando.
            - É mesmo. Agora, olha a demônia levantando pra ir vê-lo. Acho que se ele estivesse vivo daria na cara dela.
            A filha da Gracinha está de novo na fila do banheiro. Acho que já tenho um plano.
            - Ah Judite! Se eu fosse mais ligado ao velho daria um soco na cara dela. Acho que todo mundo que está aqui e gostava dele iria aplaudir.
            - Até ele vai aplaudir, Amâncio.
            - Vai mesmo!
            Vou fazer a Judite arrumar uma confusão com essa velha. Tranco a filha da gostosa no banheiro e deixo ela chorar um pouco. Então, durante a confusão Devair vai sair pra separar a briga da irmã e...
            - Olá Clarinda. Meus Sentimentos.
            - Que Deus o tenha, né Amâncio?
            - É sim, Clarinda.
            Então eu chego com a filha dela no colo e falo que está querendo ir embora, pois ficou presa no banheiro. Aí...
            - Você acha que quem morre pode voltar, Amâncio?
            - Claro que não, Judite. Isso é coisa da sua imaginação!
            - Eu acho que vi o dedo do velho mexendo.
            - Foi não, mulher. Ele está mortinho da silva e só vai voltar nos nossos sonhos.
            -Sei lá, Amâncio.
            - Temos que cuidar dos vivos. Principalmente aqueles que fizeram mal para quem a gente amava.
            - Olha como é cara-de-pau. Passou a mão na cabeça da tia Glorinha. Agora vou lá quebrar a cara dela.
            - Vai sim, Judite. Quebra ela!
            - Ei, sua vagabunda! Quem você acha que....
            Essa aí é brava. Tenho que ser rápido. É só empurrar um pouco a porta assim, que a fechadura emperra.
            - Ai meu Deus! Que brigalhada. Olha lá, Amâncio. Estão rolando no chão.
            - É sim, dona Cleuza.
            - Tem alguém preso no banheiro, Amâncio. Deve ser criança, porque tá chorando.
            - Ai meu Deus!Deixa que eu ajudo.
            Como eu havia previsto. O Devair já está lá puxando a irmã e a safada tá procurando a filha.
            - Pronto, menina! Não precisa chorar.
            - Eu quero a minha mãe.
            - Vamos que eu levo você.
            Lá vem ela. Muito boa!
            - O que aconteceu filhinha? Oi Amâncio.
            Oi gostosa.
            - Oi Gracinha. Ela ficou presa no banheiro. Foi só isso.
            - Ai Amâncio, muito obrigada. Nem sei o que posso fazer pra retribuir seu favor.
            - Eu sei.
           

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

EM BRANCO E PRETO

 Raphael Montechiari

- Sim. Aqui estou eu, doutor. Voltei depois de vários anos sem precisar pisar num oftalmologista.
- Mas não é o mesmo problema daquela época, é? Você era bem garoto quando veio aqui. Sua mãe te trouxe. Me lembro dela. Como é que ela tá?
- É. Ela tá bem. Em casa, fazendo o almoço pra mim e pro pai. Sabe que o pai, mesmo podendo se aposentar continua trabalhando?
- Ih. É assim mesmo. Eu também já poderia ter me aposentado. Mas não quero me sentir inútil não, sabe? E também, que saber? Não consigo me imaginar sentado o dia inteiro jogando cartas numa praça ou andando atrás de promoções nos supermercados.
- É. Mas acho que ele poderia pelo menos pegar mais leve. Na idade que ele tá não pode ficar exagerando!
- Isso é verdade. Mas me conte, rapaz? O que o traz aqui depois de tanto tempo?
- Então, doutor. Estou há uma semana com um problema que nunca ouvi falar que ninguém tenha tido antes. Talvez o senhor, que trabalhe com isso, já tenha visto.
- Já vi tantas coisas que você nem pode imaginar, filho. Sente alguma dor na vista?
- Não. Nada de dor.
- Então vem cá. Antes de me dizer qualquer coisa, vou fazer uma análise geral da sua vista. Às vezes posso até adivinhar antes mesmo de você me dizer. Há tanto tempo trabalhando com isso nada mais é novo aqui. Senta aqui. Isso. Olha para essa luz amarela e fique com os olhos bem abertos.
- Olhar para essa luz aqui, né?
- Claro. Por acaso está vendo outra luz amarela?
- Nem outra luz verde. Só tem uma luz aqui.
- Tem razão. Olhe pra luz.
- Certo.
- Hum. Tudo normal. Nada que possa, à primeira vista, parecer de errado. Vem. Levanta com cuidado pra não bater a cabeça na lâmpada. Isso. Senta aqui e me diga as letras que vou te indicando.
- A, F, S, K, M, D e G
-Ótimo. Na linha de baixo.
- U, F, R, T, Q, A e P.
- Perfeito. Agora essa aqui é a última. Vamos lá. Me diz as letras.
- G, F, E, R, W, G e X.
- Tudo certo! É. Não tem nada de errado a princípio. Me rendo! Pode então me dizer o que está ocorrendo.
- Doutor, há uma semana, eu comecei a ver algumas coisas como se estivessem desbotadas. Por exemplo: as árvores não estavam com o verde tão verde e o céu estava ficando mais acinzentado, mesmo com o tempo limpo e com sol. Inclusive o sol foi ficando mais branco. Durante toda a semana foi tudo ficando assim, desbotado. E foi ficando cada vez mais até chegar a quinta-feira e estar tudo assim, como tá hoje.
- Assim como?
- Tudo em preto-e-branco. Não vejo cor nenhuma. É como se estivesse vendo tudo numa televisão antiga, entende?
- Aham. Isso é, claramente, um daltonismo. Você está cego para as cores. Geralmente isso ocorre só com o vermelho ou só com o verde, fazendo você confundir as cores pela falta das outras. Mas o seu caso é mais grave. E eu ainda não tinha visto desse jeito. Você tá cego pra quase todas as cores.
- E isso tem cura?
- Creio que não, meu jovem.

Saí do consultório um pouco triste, um pouco perturbado. Estava tudo tão sem graça! Me lembro da semana passada, quando eu via tudo colorido. Os olhos verdes da Beatriz Lourenço e seus cabelos amarelos. Uma blusa branca e uma calça jeans azul clara. Na minha mente, tudo ainda é colorido. Pena que meus olhos me escondem as cores. Voltei para casa e fiquei dois dias de olhos fechados. Não queria mais comer. Uma banana cinza, um alface branco e um bife preto. O tomate parecia estragado e a maçã era horrível. Nada tinha graça. Não iria mais para a praia ver um mar feio, com gentes branquelas ou totalmente pretas. O bronzeado da pele da beatriz Lourenço só estaria nas minhas lembranças. E suas roupas todas seriam sem nenhuma graça. Fiquei dois dias em casa e liguei para ela. Ouvi-la era tão bom que acho que não queria ver a dona daquela voz em preto e branco. Acho que perderia o encanto.

- E como você está amor?
- Estou mal.
- O quê? O quê que aconteceu?
- Nada do que vejo tem mais graça. Tá tudo preto e branco. Você nem imagina que tristeza que é. Perdi a fome e nem tenho saído de casa.
- Mais você tem que procurar um médico.
- Já fui. Ele me disse que eu sou um daltônico como ele nunca tinha visto antes.
- Meu Deus! Mas não te passou nenhum remédio?
- Ele disse que não tem cura.
- Então você não vê cor nenhuma?
- Vejo. Só o preto e o branco.
- Mas desde quando você tá assim?
- Desde a semana passada.
- E por que não me ligou antes?
- Porque eu queria te ligar já dando boas notícias. Mas como elas não iam vir mais resolvi te ligar pra contar.
- Quando você vem?
- No próximo final de semana.
- E o seu trabalho?
- Acho que tá tranqüilo. Dá pra identificar as moedas e notas pelos números. Só que quando descobrirem o que aconteceu comigo devo ser trocado de cargo. As cores ajudam muito na distinção das notas e isso pode me atrapalhar um pouco, lá no banco. Sei lá.
- Ai, meu Deus. Coitadinho. Mas vai dar tudo certo.
- Eu queria muito te ver. Depois que te conheci passei a contar cada segundo sem você para chegar mais rápido nosso encontro.
- Eu também. Mas já tá chegando.

Apesar de faltarem cinco dias para eu a vê-la novamente pareciam cinco anos. E a vida, que já estava sem graça, agora estava sem cores. Fui ao trabalho durante toda a semana sem falar nada a ninguém. Algumas confusões, mas nada de grave que alguém pudesse notar. Durante o trabalho eu olhava para o relógio de dez em dez segundos e ele parecia não andar. Às vezes acho que voltava pra trás. Ficava ali, contando o dinheiro uma, duas, três vezes e olhava para ele. Preto. Branco. Com ponteiros pretos. Antes eram vermelhos. Quase parados. Eu achava que os segundos eram rápidos, há um tempo. “Preparo o relatório em um segundo!” Era o que me diziam, quando queriam dizer que seria rápido. E eu sempre disse isso. Mas o segundo é muito lento quando se está esperando. E eu posso jurar que, desde que eu parei de contar a terceira vez aquele bolo de notas o segundo não passou. Estava ali, quase chegando ao outro traço do relógio. Eu via que estava andando, mas não chegava jamais. E quando chegou percebi que tinha outra distância astronômica até o outro. E isso precisaria acontecer sessenta vezes para completar o minuto. E sessenta vezes sessenta para completar a hora. E isso tudo vezes vinte e quatro. E ainda faltavam cinco dias para eu encontrá-la! O tempo não é o mesmo! Não pode ser o mesmo! Quando estou com a Beatriz Lourenço eu não consigo sequer ver o ponteiro passar pelos segundos. Acho que ele anda de minuto em minuto. Talvez de hora em hora. Mas agora eu posso jurar que está ainda indo para o terceiro segundo, desde que eu parei de contar aquela terceira vez o bolo de notas. E tenho certeza que o relógio está funcionando bem. A estagiária traz o pacote de notas de um em um minuto. E ela não chega!

- Já tá na hora do almoço?
- Quem dera. Acabamos de chegar, moço.
- Não é possível!

O tempo não passava. E o mundo ao meu redor estava em preto e branco. Achei que eu iria enlouquecer. Até que dei mais uma olhada no relógio e, graças a Deus, tinha chegado ao quinto segundo. Bastava eu esperar mais cinqüenta e cinco para completar um minuto e aí só faltariam cinqüenta e nove para ter passado a primeira hora. Fiquei todo o expediente tentando descobrir o que poderia ter acontecido com meus olhos. O tempo, acreditem, passou e deu minha hora de sair.
Do trabalho fui direto para casa, fechar os olhos e sonhar colorido. Minha mãe estava muito preocupada e a ouvi ao telefone contando para nossa tia a situação. Tia Carmem sempre tinha solução pra tudo e ensinou como fazer um remédio para a vista. Mas não deu certo. Depois mandou uma simpatia, que também não deu certo. E nem rezas aos santos mais fortes me curaram daquele mal.

No dia seguinte acordei com o barulho irritante do despertador. Liguei o rádio, como de costume e fui me barbear. Ouvi algumas notícias sobre o trânsito e quando o locutor anunciou “Liberdade”, a famosa música do Castro Alencar, ouvi somente ruídos. Fui até o rádio para sintonizar e nada. Mudei de estação e os ruídos lá estavam. Desesperado, cheguei até a minha mãe, que ouvia também sua rádio e perguntei:

- Mãe. Deu algum problema nas rádios? Que barulheira estranha! Isso não incomoda a senhora?
- Que barulheira o que, menino! Barulheira é aquilo que você ouve. Aquele rock pesado. Isso é Castro Alencar!
- Isso?
- É. Música de qualidade!
- Mas eu só estou ouvindo ruídos.
- Como assim?
- Como se estivesse fora do ar.
- Ai, meu Deus. E sua vista? Continua em preto e branco?
- Sim.
- Minha Nossa Senhora! O que tá acontecendo, menino?

E realmente eu não podia mais ouvir música. Passava e via pessoas cantando. Mas só via. Da boca delas saía ruídos, como de ratos guinchando ou de bois mugindo. E eu olhava espantado para as pessoas que sorriam para mim. E os passarinhos faziam um barulho que também me irritava. O que teria acontecido comigo?
De volta ao banco. De volta à batalha contra o relógio. Lá estava ele. Preto e branco. Segundo por segundo, se arrastando. E agora, quando soava a música do relógio, avisando a hora certa, era um sofrimento. Um barulho ensurdecedor e que me incomodava absurdamente. Uma senhora, na fila me viu tapando os ouvidos e a vi sorrindo. Sua gengiva cinza, seu cabelo cinza claro e sua cara branca. Roupa preta e tudo mais que a cercava era preto e branco. Fui ao banheiro. Lá estava alguém escovando os dentes e fazendo ruídos com a boca. Desisti e voltei para a contagem de notas. Ainda bem que não trabalho num lugar que tenha música ambiente. Estou desgraçado! A única coisa que me resta na vida é a minha Beatriz Lourenço. Com ela, mesmo em preto e branco e até sem música tudo vai ser melhor.
No dia seguinte, o ruído estava mais baixo, pois minha mãe, sabendo como eu estava, colocou o rádio bem baixinho para não me atrapalhar. O café estava sem doce e reclamei com ela.

- Mãe. Esqueceu de colocar doce no café?
- Não acredito. Claro que coloquei. Acabei de tomar. Perdeu o paladar também?
- Não. Sinto o sabor amargo do café. Mas não sinto o doce. E nem o salgado do queijo.
- Santa Maria, mãe de Deus. Rogai por nós pecadores.
Resumindo. Sem cores, sem música, sem doce nem salgado. O que mais poderia me acontecer? Cheiro, tato?

O tempo, enfim passou, e chegou a hora de viajar. Não que tenha sido rápido, mas passou. Torturantes cinco dias. Logo de manhã acordei, me levantei e tentei não prestar atenção em mais nada que tivesse parado de funcionar no meu corpo. Peguei minhas coisas e fui direto para a ferroviária. Assim que o trem chegou, entrei e tive que agüentar todos os ruídos que saíam das caixas de som da estação. Adorei quando pararam as músicas e deram os avisos de partidas de trens. Nem reparei nas moças que passavam por mim, com roupas em preto e branco. Pareciam todas uniformizadas. Entrei e procurei um jeito de dormir. A única coisa que me deixava feliz era estar com Beatriz Lourenço. Dormi. Sonhei com um parque cheio de árvores em preto e branco. Então Beatriz vinha com um pincel e coloria tudo. As árvores ficavam lindas com suas folhas verdes e o tronco marrom. O lago bem azulzinho, e um cisne branco nadava nele. Com o bico laranja. Meninas brincavam, com vestidinhos rosas e o céu era de um azul sem fim. Beatriz surgia de novo, com um violino, tocando lindas melodias e as meninas cantavam e dançavam. Depois jogavam balas e chocolates. Deliciosos. Doces.

Assim que acordei com o apito do trem notei que havia chegado e a música “Liberdade”, de Castro Alencar soava nos alto-falantes da estação. Abri os olhos e pude ver que tudo estava colorido. Mais até que o normal. Limpei meus olhos e a vi. Linda. Loira, de olhos verdes, pele rosada e camisa branca com listras azuis. Sua saia era azul, combinando com as listras e ela trazia uma caixa de bombons. Eu a abracei, como se estivesse passado anos longe dela e dei o melhor beijo de toda minha vida. Então contei que estava tudo normal e contei o que havia me acontecido durante a semana. Eu olhava para cada canto e apreciava cada cor como eu nunca havia apreciado antes. Fomos para casa comendo bombons doces e almoçamos delícias salgadas, com seus pais coloridos e com músicas lindas ao fundo. E desde então nunca mais fiquei longe dela.