sábado, 27 de março de 2010

A ÚLTIMA CEIA

Raphael Montechiari


- Acorda, dorminhoco! Anda! Vem que o almoço está pronto.

Ela abriu as cortinas e ligou o rádio.

- Vem logo senão vai esfriar.

Me senti um pouco perdido. Demorei alguns minutos para me situar. Depois senti uma forte dor de cabeça me dominando. Fiquei por mais um tempo tentando me recompor para conseguir levantar.

- Já está todo mundo na mesa, só esperando por você para almoçar – disse minha irmã ao passar pela porta do meu quarto.

Me veio à mente alguns momentos da noite anterior. Eu havia saído com meus amigos para o baile da cidade, mas não tinha a mínima idéia de como eu havia voltado.Isso me trouxe uma angústia. Mesmo forçando a mente, não me lembrava de nada.

Fui ao banheiro, escovei os dentes e cheguei na cozinha. Todos me olharam rapidamente e continuaram a conversa enquanto terminavam o almoço.

- Te esperamos muito tempo. Agora vai comer sozinho – disse meu pai com a boca cheia de comida e com os olhos cheios de raiva.

Não sentia nenhuma vontade de comer e nem o bacalhau com batatas, que eu tanto gostava, me apetecia. Mas precisava comer pois eles não poderiam sequer suspeitar que eu havia bebido na noite anterior. Assim, arrumei meu prato e fui beliscando aos poucos. Enquanto isso minha mãe lavava os pratos e arrumava a cozinha, como era de costume. Ela falava sobre como a louça estava velha e que estava desde cedo polindo os móveis. Falou de muita coisa, mas minha mente resolveu liberar mais algumas informações sobre a noite anterior.

Me lembrava de como eu havia bebido e de uma mulher me batendo porque eu tinha feito algo que eu não sabia agora o que era. Em minha mente, vi que ela chorava e meus amigos riam. E eu também ria. Me lembro também de ter cheirado uma ou duas carreiras de pó e bebido mais vodka. A garota aparecia chorando de novo e meus amigos rindo. E agora me vem uma cena bem recorrente naquela noite. Um vaso cheio de vômito e um cheiro forte de urina. Eu sentia meus joelhos molhados, encharcados. E depois de novo, só que um outro vaso. E uma terceira vez.

- Você viu?
- Que foi, minha mãe?
- Quando acabou a eleição, a confusão que deu na rua?
- Vi sim. Isso foi em outubro.
- Mas foi um desaforo!

Ela voltou a contar casos e eu a reviver fatos. Eu via pés passando e gotas de lama vindo em minha direção. A grama estava espetando meu rosto e sentia arder os meus olhos. Em seguida me lembrava de outra cena. Alguém ajoelhado olhando para cima. Parecia estar me suplicando. Seu rosto ensangüentado e meus amigos olhando para mim e dando pontapés em sua costela. Sei que era um garoto. De uns dezesseis anos. Negro, magrinho e ensangüentado. Não havia mais ninguém por perto. Agora me lembro dele. Ele vendia picolé na rua e gritava bem alto: “Olha o picolé!” e sorria olhando alguém que o chamava. Suas sandálias gastas e seu short vermelho com três listras brancas do lado. Uma camiseta branca, com algum nome e número de um político qualquer, estampado atrás. Um picolé vendido era uns centavos a mais que ele conseguia para comprar algo de comer. Por isso o sorriso. E agora o que ele estava fazendo ajoelhado na minha frente? Seus dentes que antes sorriam agora sangravam. E meus amigos o chutavam.

- Quero ver se ele soubesse o trabalho que dá.
- De quê, mãe?
- De que? De lavar a toalha de mesa toda vez que ele come. Daqui a uns tempos vou mandar comer fora de casa porque não tem educação.
- Quem?
- Seu pai, menino. De quem você acha que estou falando? Sua irmã está lavando sua roupa de cama, aproveitando que teria mesmo que lavar a toalha de mesa.

Olhei minha irmã lavando um lençol encardido de lama e sangue. A roupa que eu havia saído ontem estava estendida no varal. Ela sempre fazia isso. Antes que meus pais descobrissem o que eu havia feito de errado ela chegava e limpava todas as pistas. Depois vinha brigar comigo. Mas eu estava tentando me lembrar que fim havia tido o garoto. Ele era amigo ou namorado da menina que estava chorando, no início de minhas lembranças?

Sim. Posso vê-lo, ao retornar à cena, quando a via chorando e meus amigos rindo. Ele estava chegando por trás de um deles e o acertava com um soco. Estava sozinho. E nós o levamos para a beira da estrada e o surramos. Até que ele estava ajoelhado pedindo perdão. E meus amigos davam pontapés. E minha mãe falava comigo. E eu não a ouvia. Só tentava me lembrar.

- Por favor, me deixe ir embora.
- Agora vai morrer, seu negro filho da puta.
- Vai, acerta logo na cabeça dele.
- O que tenho que fazer mesmo, quando a pia fica entupida?
- Joga soda cáustica.
- Acerta logo. Ele que te fudeu com a mulher.
- Ela é minha irmã.
- Chame sua irmã pra me ajudar. E termine logo com o almoço que eu quero lavar seu prato e ir dormir um pouco. Estou muito cansada.
- Ela era sua irmã.
Eu o acertei com um porrete, que um de meus amigos sempre levava no carro. Eu estava drogado, bêbado, amaldiçoado. Acertei bem na cabeça dele.
- Olha o picolé!
- Joga o corpo no rio.
- Agora tem que deixar até a soda queimar o lixo que entrou pelos canos. Já te disse pra não tirar o ralo, mamãe.
- Mas demora muito, menina.
- Vamos embora.
Eu caído.
Algum desconhecido me levando para casa.
- Quando terminar lave o prato, que já te esperei demais.
- Tá.

Era o máximo que eu conseguia falar. Meus olhos estavam cheios d’água e um nó na garganta me maltratava. Fiquei ali, por alguns minutos, enquanto a água descia. Me levantei, lavei meu prato e fui até o quarto me vestir, antes que minha irmã terminasse de lavar a roupa e viesse me questionar. Depois fui até o quarto dos meus pais, olhei-os e fechei a porta com cuidado. Minha irmã agora estava estendendo as últimas peças de roupa no varal e não tive coragem de encará-la. Saí pela porta da frente depois de deixar um bilhete: “Fui até a delegacia. Não me esperem para jantar.”

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