sábado, 10 de abril de 2010

ERA ASSIM

Raphael Montechiari

Você estava sentada na cerca, com os pés apoiados na ripa de baixo. Suas pernas eram bem brancas e bem torneadas. Você estava com um chinelinho preto ou com uma sandália de tiras. Sei que a cor era preta. Não me lembro se estava de meias. Acho que havia um pouco de mato tapando os pés. A ponta do matinho, bem fininho, com algumas flores, chegava até seus pés. E o vento balançava as flores e os matinhos para o leste. É o vento das cinco da tarde. Sempre sopra para o leste.

Lembro que você estava com uma bermuda de tecido mole, com um ou dois bolsos. Não dava pra ver muito bem o lado. Sei que era xadrez e tinha duas alças que iam até os ombros. Uma camisa rosa com algo escrito. A cerca estava com a tinta branca bem descascada e parecia ser de um curral, apesar de não ter nenhum boi ou vaca atrás de você. Tinha dois passarinhos se bicando, brincando e cantando no chão, à sua esquerda. E você olhava pra eles sorrindo. Um sorriso bem puro e divertido. Tanto que dava pra ver um pouco dos dentes brancos aparecendo entre seus lábios. Um sorriso verdadeiro! Os olhos quase fechados e covinhas nas bochechas. O cabelo estava amarrado, com um rabo de cavalo escondido atrás da cabeça.

Suas mãos estavam apoiadas na cerca com os polegares voltados para frente e os outros dedos escondidos atrás da ripa da cerca. Os ombros um pouco levantados por conta dos braços longos. E o sorriso puro e divertido. O vento das cinco também balançava as pontas do seu cabelo e levava algumas folhas secas de árvores. No fundo, bem no fundo mesmo, havia duas montanhas claras e com pequenas árvores nos cumes e um céu azul entre elas. Uma poeirinha de nuvens aparecia perto da montanha da esquerda mas todo o resto era bem azul.

Você? Sorria olhando os passarinhos brincando. Passarinhos azuis com a barriga branca e bicos alaranjados. E seus pés, apoiados nas ripas, pareciam balançar em um ritmo constante. Eu juraria que você esteve ali sua vida inteira e a vida inteira com aquele sorriso puro e divertido. E verdadeiro! Olhando para os passarinhos, sentada naquela cerca branca com os olhos quase fechados. Assim que eu te desenhei.

sábado, 3 de abril de 2010

UM DIA

Raphael Montechiari

Um dia eu acordei. Notei que tudo estava diferente. Borrado, como num quadro de Munch. Mas tudo real a espera do contato de minhas mãos.

Ao prestar mais atenção notei que estava sob uma árvore e via os borrões verdes das folhas ligados por traços retos, como se tivessem sido feitos com dedos molhados numa tinta marrom. Ao fundo, se descolou da árvore um azul claro sem fim com um brilho chegando pelo cantinho esquerdo. Tudo ainda borrado. Mas ao fixar o olhar eu começava a ir definindo algumas coisas.

Levantei-me e pude ver um sol sorrindo para mim, com dois olhos semi-fechados ou semi-abertos. Os raios de sol estavam espetados em toda sua cabeça redonda e pude notar uma covinha se formando nas pontas do sorriso. Meus olhos se ofuscaram como se ofuscam os olhos de quem olha para o sol. Ao mudar a direção do meu olhar vi um barquinho bem ao fundo. Ele era azul e tinha uma janelinha de vidro redonda, com uma bandeirinha vermelha logo acima do convés. Ele navegava num azul escuro, brilhoso e cheio de ondas e um peixe amarelo saltava em intervalos de tempo regulares ao seu lado. E passavam pássaros. Eles olhavam para mim sorrindo e dando adeus e então seguiam seu caminho formando vários tracinhos pretos no sol.

Agora a árvore oferecia uma maçã vermelha, meio mal pintada, entre suas folhagens. Consegui esticar minha mão para pegá-la e notei que tinha uma mão bem borrada também. Admirei a linda maçã vermelha, entre meus dedos rosados e notei que saia dela uma pequena lagartinha, que me disse: “Se for pra te ver sorrir, cedo a maçã e minha vidinha inútil.” Eu mordi a maçã - e a lagartinha - e senti um gosto maravilhoso de chocolate com mel e uma pontinha de anil. Assim que terminei de comer meu pêssego maduro e mal-pintado, olhei outra vez para o alto do morro onde estava a casinha azul, de janelinha quadrada e com a chaminé vermelha logo acima do telhado. Ela havia sido construída sobre uma relva verdinha e com pontas irregulares, como dentes afiados. E os dentes eram de serra e começaram a andar e cortar o tronco da árvore, que aos poucos gemia e pedia por ajuda. Mas os pássaros pareciam sorrir ainda e o sol sorria de volta para eles.

O vento carregava uma pipa bem amarela com uma cruz azul em seu dorso. E a rabiola vermelha acenava para mim e para a lagartinha que saía por entre meus dentes. Ela tinha um estranho sabor marrom e meus dentes davam passagem para ela. Enquanto me distraía com os pássaros sorrindo para o sorriso que criei ao tentar retirá-la com vida, o sol foi se encaminhando para o mar e chegou a chamuscar o cantinho do barco.

A lua exibia uma cara pensativa e não podia esconder algumas marcas de espinhas nas bochechas. Ela havia acabado de sair do mar e ainda escorria um pouco d’água. Algo borrou sua cor amarelo-clara. Era uma fumaça cinza, que saía da chaminé da casinha azul com janela quadrada que, logo em seguida, sumiu para dar lugar a outra e a outra e a outra, até me fazerem entender que se tratava de um trem. E seu apito zunia nos meus ouvidos que, por sorte, estavam com pequenas lagartinhas protegendo os tímpanos. Elas tinham abandonado a árvore, que ainda era borrada. Não tinha mais sua maçã e nem seu gato preso que eu havia resgatado. Também estava sem o buraco no tronco que havia sido pintado por uma menininha rosa feita de pano.

O trem, andando pelas montanhas, entrou pela boca da lua, que era como um túnel e, subitamente, furou a tela da pintura, vindo de encontro a mim. Só podia ver a luz do trem e ouvir seu assovio. Eu tentava correr, mas meus pés não me obedeciam. Quando já podia sentir o choque dele contra meus ossos senti o chão caindo e a árvore, a casa, o barquinho, a lua e o céu ficando para baixo. Notei que estava voando e a sensação era fantástica! Fazia um movimento para frente e logo estava flutuando por sobre um deserto azul, só iluminado pela luz da lua. Aproximei-me de uma cordilheira, com cumes cheios de neve, e já conseguia ver algumas árvores e um rio cortando as montanhas ao meio. E era tudo tão iluminado pela lua que eu podia ver as corujas, lá embaixo sorrindo para mim. E voava como nunca havia voado antes!

Um dia eu acordei.