tag:blogger.com,1999:blog-60145434668422213762024-02-08T04:01:37.742-08:00O Mundo MoldadoPegando o mundo que me foi apresentando e criando um mundo moldado à minha maneira.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.comBlogger16125tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-37126482863991860622010-04-10T15:19:00.000-07:002010-04-10T15:19:00.284-07:00ERA ASSIM<i>Raphael Montechiari</i><br />
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Você estava sentada na cerca, com os pés apoiados na ripa de baixo. Suas pernas eram bem brancas e bem torneadas. Você estava com um chinelinho preto ou com uma sandália de tiras. Sei que a cor era preta. Não me lembro se estava de meias. Acho que havia um pouco de mato tapando os pés. A ponta do matinho, bem fininho, com algumas flores, chegava até seus pés. E o vento balançava as flores e os matinhos para o leste. É o vento das cinco da tarde. Sempre sopra para o leste.<br />
<br />
Lembro que você estava com uma bermuda de tecido mole, com um ou dois bolsos. Não dava pra ver muito bem o lado. Sei que era xadrez e tinha duas alças que iam até os ombros. Uma camisa rosa com algo escrito. A cerca estava com a tinta branca bem descascada e parecia ser de um curral, apesar de não ter nenhum boi ou vaca atrás de você. Tinha dois passarinhos se bicando, brincando e cantando no chão, à sua esquerda. E você olhava pra eles sorrindo. Um sorriso bem puro e divertido. Tanto que dava pra ver um pouco dos dentes brancos aparecendo entre seus lábios. Um sorriso verdadeiro! Os olhos quase fechados e covinhas nas bochechas. O cabelo estava amarrado, com um rabo de cavalo escondido atrás da cabeça.<br />
<br />
Suas mãos estavam apoiadas na cerca com os polegares voltados para frente e os outros dedos escondidos atrás da ripa da cerca. Os ombros um pouco levantados por conta dos braços longos. E o sorriso puro e divertido. O vento das cinco também balançava as pontas do seu cabelo e levava algumas folhas secas de árvores. No fundo, bem no fundo mesmo, havia duas montanhas claras e com pequenas árvores nos cumes e um céu azul entre elas. Uma poeirinha de nuvens aparecia perto da montanha da esquerda mas todo o resto era bem azul.<br />
<br />
Você? Sorria olhando os passarinhos brincando. Passarinhos azuis com a barriga branca e bicos alaranjados. E seus pés, apoiados nas ripas, pareciam balançar em um ritmo constante. Eu juraria que você esteve ali sua vida inteira e a vida inteira com aquele sorriso puro e divertido. E verdadeiro! Olhando para os passarinhos, sentada naquela cerca branca com os olhos quase fechados. Assim que eu te desenhei.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-37279290951991651002010-04-03T15:18:00.000-07:002010-04-03T15:18:00.820-07:00UM DIARaphael Montechiari<br />
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Um dia eu acordei. Notei que tudo estava diferente. Borrado, como num quadro de Munch. Mas tudo real a espera do contato de minhas mãos. <br />
<br />
Ao prestar mais atenção notei que estava sob uma árvore e via os borrões verdes das folhas ligados por traços retos, como se tivessem sido feitos com dedos molhados numa tinta marrom. Ao fundo, se descolou da árvore um azul claro sem fim com um brilho chegando pelo cantinho esquerdo. Tudo ainda borrado. Mas ao fixar o olhar eu começava a ir definindo algumas coisas. <br />
<br />
Levantei-me e pude ver um sol sorrindo para mim, com dois olhos semi-fechados ou semi-abertos. Os raios de sol estavam espetados em toda sua cabeça redonda e pude notar uma covinha se formando nas pontas do sorriso. Meus olhos se ofuscaram como se ofuscam os olhos de quem olha para o sol. Ao mudar a direção do meu olhar vi um barquinho bem ao fundo. Ele era azul e tinha uma janelinha de vidro redonda, com uma bandeirinha vermelha logo acima do convés. Ele navegava num azul escuro, brilhoso e cheio de ondas e um peixe amarelo saltava em intervalos de tempo regulares ao seu lado. E passavam pássaros. Eles olhavam para mim sorrindo e dando adeus e então seguiam seu caminho formando vários tracinhos pretos no sol. <br />
<br />
Agora a árvore oferecia uma maçã vermelha, meio mal pintada, entre suas folhagens. Consegui esticar minha mão para pegá-la e notei que tinha uma mão bem borrada também. Admirei a linda maçã vermelha, entre meus dedos rosados e notei que saia dela uma pequena lagartinha, que me disse: “Se for pra te ver sorrir, cedo a maçã e minha vidinha inútil.” Eu mordi a maçã - e a lagartinha - e senti um gosto maravilhoso de chocolate com mel e uma pontinha de anil. Assim que terminei de comer meu pêssego maduro e mal-pintado, olhei outra vez para o alto do morro onde estava a casinha azul, de janelinha quadrada e com a chaminé vermelha logo acima do telhado. Ela havia sido construída sobre uma relva verdinha e com pontas irregulares, como dentes afiados. E os dentes eram de serra e começaram a andar e cortar o tronco da árvore, que aos poucos gemia e pedia por ajuda. Mas os pássaros pareciam sorrir ainda e o sol sorria de volta para eles. <br />
<br />
O vento carregava uma pipa bem amarela com uma cruz azul em seu dorso. E a rabiola vermelha acenava para mim e para a lagartinha que saía por entre meus dentes. Ela tinha um estranho sabor marrom e meus dentes davam passagem para ela. Enquanto me distraía com os pássaros sorrindo para o sorriso que criei ao tentar retirá-la com vida, o sol foi se encaminhando para o mar e chegou a chamuscar o cantinho do barco. <br />
<br />
A lua exibia uma cara pensativa e não podia esconder algumas marcas de espinhas nas bochechas. Ela havia acabado de sair do mar e ainda escorria um pouco d’água. Algo borrou sua cor amarelo-clara. Era uma fumaça cinza, que saía da chaminé da casinha azul com janela quadrada que, logo em seguida, sumiu para dar lugar a outra e a outra e a outra, até me fazerem entender que se tratava de um trem. E seu apito zunia nos meus ouvidos que, por sorte, estavam com pequenas lagartinhas protegendo os tímpanos. Elas tinham abandonado a árvore, que ainda era borrada. Não tinha mais sua maçã e nem seu gato preso que eu havia resgatado. Também estava sem o buraco no tronco que havia sido pintado por uma menininha rosa feita de pano. <br />
<br />
O trem, andando pelas montanhas, entrou pela boca da lua, que era como um túnel e, subitamente, furou a tela da pintura, vindo de encontro a mim. Só podia ver a luz do trem e ouvir seu assovio. Eu tentava correr, mas meus pés não me obedeciam. Quando já podia sentir o choque dele contra meus ossos senti o chão caindo e a árvore, a casa, o barquinho, a lua e o céu ficando para baixo. Notei que estava voando e a sensação era fantástica! Fazia um movimento para frente e logo estava flutuando por sobre um deserto azul, só iluminado pela luz da lua. Aproximei-me de uma cordilheira, com cumes cheios de neve, e já conseguia ver algumas árvores e um rio cortando as montanhas ao meio. E era tudo tão iluminado pela lua que eu podia ver as corujas, lá embaixo sorrindo para mim. E voava como nunca havia voado antes! <br />
<br />
Um dia eu acordei.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-69463797063574225712010-03-27T15:12:00.000-07:002010-03-27T15:12:00.558-07:00A ÚLTIMA CEIARaphael Montechiari<br />
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- Acorda, dorminhoco! Anda! Vem que o almoço está pronto.<br />
<br />
Ela abriu as cortinas e ligou o rádio.<br />
<br />
- Vem logo senão vai esfriar.<br />
<br />
Me senti um pouco perdido. Demorei alguns minutos para me situar. Depois senti uma forte dor de cabeça me dominando. Fiquei por mais um tempo tentando me recompor para conseguir levantar.<br />
<br />
- Já está todo mundo na mesa, só esperando por você para almoçar – disse minha irmã ao passar pela porta do meu quarto.<br />
<br />
Me veio à mente alguns momentos da noite anterior. Eu havia saído com meus amigos para o baile da cidade, mas não tinha a mínima idéia de como eu havia voltado.Isso me trouxe uma angústia. Mesmo forçando a mente, não me lembrava de nada.<br />
<br />
Fui ao banheiro, escovei os dentes e cheguei na cozinha. Todos me olharam rapidamente e continuaram a conversa enquanto terminavam o almoço.<br />
<br />
- Te esperamos muito tempo. Agora vai comer sozinho – disse meu pai com a boca cheia de comida e com os olhos cheios de raiva.<br />
<br />
Não sentia nenhuma vontade de comer e nem o bacalhau com batatas, que eu tanto gostava, me apetecia. Mas precisava comer pois eles não poderiam sequer suspeitar que eu havia bebido na noite anterior. Assim, arrumei meu prato e fui beliscando aos poucos. Enquanto isso minha mãe lavava os pratos e arrumava a cozinha, como era de costume. Ela falava sobre como a louça estava velha e que estava desde cedo polindo os móveis. Falou de muita coisa, mas minha mente resolveu liberar mais algumas informações sobre a noite anterior.<br />
<br />
Me lembrava de como eu havia bebido e de uma mulher me batendo porque eu tinha feito algo que eu não sabia agora o que era. Em minha mente, vi que ela chorava e meus amigos riam. E eu também ria. Me lembro também de ter cheirado uma ou duas carreiras de pó e bebido mais vodka. A garota aparecia chorando de novo e meus amigos rindo. E agora me vem uma cena bem recorrente naquela noite. Um vaso cheio de vômito e um cheiro forte de urina. Eu sentia meus joelhos molhados, encharcados. E depois de novo, só que um outro vaso. E uma terceira vez.<br />
<br />
- Você viu?<br />
- Que foi, minha mãe?<br />
- Quando acabou a eleição, a confusão que deu na rua?<br />
- Vi sim. Isso foi em outubro.<br />
- Mas foi um desaforo!<br />
<br />
Ela voltou a contar casos e eu a reviver fatos. Eu via pés passando e gotas de lama vindo em minha direção. A grama estava espetando meu rosto e sentia arder os meus olhos. Em seguida me lembrava de outra cena. Alguém ajoelhado olhando para cima. Parecia estar me suplicando. Seu rosto ensangüentado e meus amigos olhando para mim e dando pontapés em sua costela. Sei que era um garoto. De uns dezesseis anos. Negro, magrinho e ensangüentado. Não havia mais ninguém por perto. Agora me lembro dele. Ele vendia picolé na rua e gritava bem alto: “Olha o picolé!” e sorria olhando alguém que o chamava. Suas sandálias gastas e seu short vermelho com três listras brancas do lado. Uma camiseta branca, com algum nome e número de um político qualquer, estampado atrás. Um picolé vendido era uns centavos a mais que ele conseguia para comprar algo de comer. Por isso o sorriso. E agora o que ele estava fazendo ajoelhado na minha frente? Seus dentes que antes sorriam agora sangravam. E meus amigos o chutavam.<br />
<br />
- Quero ver se ele soubesse o trabalho que dá.<br />
- De quê, mãe?<br />
- De que? De lavar a toalha de mesa toda vez que ele come. Daqui a uns tempos vou mandar comer fora de casa porque não tem educação.<br />
- Quem?<br />
- Seu pai, menino. De quem você acha que estou falando? Sua irmã está lavando sua roupa de cama, aproveitando que teria mesmo que lavar a toalha de mesa.<br />
<br />
Olhei minha irmã lavando um lençol encardido de lama e sangue. A roupa que eu havia saído ontem estava estendida no varal. Ela sempre fazia isso. Antes que meus pais descobrissem o que eu havia feito de errado ela chegava e limpava todas as pistas. Depois vinha brigar comigo. Mas eu estava tentando me lembrar que fim havia tido o garoto. Ele era amigo ou namorado da menina que estava chorando, no início de minhas lembranças?<br />
<br />
Sim. Posso vê-lo, ao retornar à cena, quando a via chorando e meus amigos rindo. Ele estava chegando por trás de um deles e o acertava com um soco. Estava sozinho. E nós o levamos para a beira da estrada e o surramos. Até que ele estava ajoelhado pedindo perdão. E meus amigos davam pontapés. E minha mãe falava comigo. E eu não a ouvia. Só tentava me lembrar.<br />
<br />
- Por favor, me deixe ir embora.<br />
- Agora vai morrer, seu negro filho da puta.<br />
- Vai, acerta logo na cabeça dele.<br />
- O que tenho que fazer mesmo, quando a pia fica entupida?<br />
- Joga soda cáustica.<br />
- Acerta logo. Ele que te fudeu com a mulher.<br />
- Ela é minha irmã.<br />
- Chame sua irmã pra me ajudar. E termine logo com o almoço que eu quero lavar seu prato e ir dormir um pouco. Estou muito cansada.<br />
- Ela era sua irmã.<br />
Eu o acertei com um porrete, que um de meus amigos sempre levava no carro. Eu estava drogado, bêbado, amaldiçoado. Acertei bem na cabeça dele.<br />
- Olha o picolé!<br />
- Joga o corpo no rio.<br />
- Agora tem que deixar até a soda queimar o lixo que entrou pelos canos. Já te disse pra não tirar o ralo, mamãe.<br />
- Mas demora muito, menina.<br />
- Vamos embora.<br />
Eu caído.<br />
Algum desconhecido me levando para casa.<br />
- Quando terminar lave o prato, que já te esperei demais.<br />
- Tá.<br />
<br />
Era o máximo que eu conseguia falar. Meus olhos estavam cheios d’água e um nó na garganta me maltratava. Fiquei ali, por alguns minutos, enquanto a água descia. Me levantei, lavei meu prato e fui até o quarto me vestir, antes que minha irmã terminasse de lavar a roupa e viesse me questionar. Depois fui até o quarto dos meus pais, olhei-os e fechei a porta com cuidado. Minha irmã agora estava estendendo as últimas peças de roupa no varal e não tive coragem de encará-la. Saí pela porta da frente depois de deixar um bilhete: “Fui até a delegacia. Não me esperem para jantar.”Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-83381121223063105942010-03-20T15:15:00.000-07:002010-03-20T15:15:00.361-07:00QUANDO SERÁRaphael Montechiari<br />
<br />
Estive lendo a respeito dos motivos que levam as pessoas a enlouquecerem. Estava no trabalho lendo e passei a prestar atenção na minha vida. Vários desses fatores que levam as pessoas a surtarem são frequentes em minha vida. Será que estou a caminho de ficar louco? Será que a qualquer momento vou ser levado para um hospício? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez.<br />
<br />
A qualquer momento eu posso começar a gritar e não parar mais. Como o Orlando Divino, aqui do escritório. Ele trabalha bem do meu lado e um dia, do nada, começou a gritar. Todo mundo se assustou e veio correndo ver o que havia acontecido. Eu quase morri do coração. Só que não foi um grito simples. O grito durava por muito tempo. Era um “aaaaaaaahh” até acabar o ar de seus pulmões. Em seguida ele respirava fundo e voltava a gritar. Eu tentei acalmá-lo e todos perguntavam o que havia acontecido. Em sua mesa alguns papéis que nada tinham de relevante. Somente documentos comuns, do dia-a-dia. Mas ele não parava e logo todo o setor estava em volta de sua mesa. Ele olhava arregalando os olhos para o nada e gritava. Sua sobrancelha ficava arquejada e o cavanhaque contornava a boca numa forma oval. Ele parecia não parar nunca. Até que chegaram os médicos e deram um tranquilizante para ele. Enquanto ele não desmaiou não parou de gritar. Ele ainda dá uns gritos, de vez em quando, mas não trabalha mais lá no escritório.<br />
<br />
Os médicos disseram que o trabalho de Orlando Divino era estressante e que o chefe, o Senhor Morales Gouveia, havia o pressionado depois de uma baixa nas vendas, Ainda soubemos que sua mulher sumia durante o horário de trabalho dele e seus amigos já o haviam alertado que a viam, constantemente, num bar do centro, com um homem alto e careca. Ela negava e ele preferia acreditar nela. Pelo menos queria acreditar. Tudo isso fez Orlando Divino começar a gritar e não parar nunca mais. <br />
<br />
Analisando a situação eu percebi que sou forte candidato a surtar. Faço o mesmo trabalho que ele, e o Senhor Morales Gouveia vive me pressionando, mesmo quando as vendas estão altas. Minha esposa não some às tardes, mas me diz diariamente que vai me largar por causa da bebida. Bebo muito nos fins-de-semana e fico mal humorado. Chego em casa xingando ela e dizendo umas verdades. Quando a gente bebe não há segredo que resista! Digo que ela está gorda e que o cabelo dela parece uma vassoura. Ela me responde que a culpa é do marido pobre que ela casou. Não tem dinheiro nem para pagar um cabeleireiro bom e nem uma academia. Ela tem até razão, mas eu também tenho. Além disso, estou cheio de dívidas e já ameaçaram nos colocar no olho da rua. <br />
<br />
Acho que tenho mais problemas que o Orlando Divino e, então, tenho sérias chances de ficar louco.<br />
<br />
A miga da minha mulher tem me provocado constantemente e o Carlitos Galvão sempre me diz para dar uns pegas nela. Ela é gostosa e muito safada. Dá de dez a zero na minha esposa. Acho que o Carlitos tem razão. Vou tirar uma tarde dessas para comer essa mulher. Será que assim eu fico com menos chances de ficar louco? Pode ser que sim, poder que não, pode ser que talvez. <br />
<br />
Carlitos Galvão também já me falou para eu dar umas porradas na minha mulher. Disse que mulher feia é feita pra tomar porrada. E também já me disse para eu quebrar meu chefe, o senhor Morales Gouveia. Ele é autoritário e gosta de me humilhar na frente de todos. Me chama de incompetente diariamente e diz que eu não duro muito tempo na firma. Carlitos me disse que ele não só merece tomar muita porrada na cara mas merece morrer. Ter uma morte dolorida pra pagar tudo que ele faz a mim. E me disse que se eu não fizer isso vou ficar louco. A qualquer momento posso surtar e quebrar tudo. Ou ficar gritando “ ahhhhh” como o Orlando Divino. Ou talvez ficar vendo pessoas que não existem, como o meu tio Alécio Bitico. Ele conversava com uma mulher que só ele via e se apaixonou por ela. Ela mandou ele se jogar na frente de um caminhão pois só assim poderia tê-la para sempre. Várias vezes ele resistiu mas um dia ela conseguiu convencê-lo. Coitado do meu tio. <br />
<br />
Eu não quero ficar louco. Mas estou vendo que não vou ter outro fim. Tudo indica que estou a dois passos de surtar. Será que tenho alguma chance? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Preciso me controlar. Tenho conversado muito com Carlitos Galvão sobre essas coisas. Ele é o faxineiro aqui do escritório. Mas é tão sábio que poderia ser o chefe. Sempre que vou ao banheiro ele está lá, limpando as privadas. Quando eu chego ele para tudo para conversarmos. Ficamos lá, por muito tempo conversando. E ele fala sobre tudo. Futebol, mulheres, filosofia, filmes. Principalmente filmes de morte. Ele adora me ensinar sobre como matar alguém. Mas ele nunca matou, só me ensina. Pensando bem, será que o Carlitos Galvão é uma alucinação? Será que já estou louco e conversando com um ser que é da minha imaginação, como o meu tio Alécio Bitico? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Preciso saber se mais alguém o conhece. Tenho falado sozinho ultimamente e pela minha cabeça passa um turbilhão de pensamentos. Uma hora tinha que dar problema. Carlitos. Vou ver com o Lúcio Mendes.<br />
<br />
- Mendes, você conhece o Carlitos Galvão? O faxineiro?<br />
- Claro. Quem não conhece o Carlitos Galvão?<br />
- Ahn. Só pra saber.<br />
<br />
Se o Lúcio o conhece então ele existe. Isso prova que ainda não estou louco. Mas sei que vou ficar. Estou com todos os sintomas. Acho que devo procurar um psicólogo. Se bem que o Lúcio Mendes já estudou psicologia. Às vezes converso com ele e me dá ótimos conselhos. Ele que me disse que a bebida era um remédio para essa vida chata. Eu não bebia nem vinho. Então saimos um dia do trabalho e tomei uma dose de conhaque. Minha vida se transformou! Tudo ficou melhor. Fiquei mais animado, falante e minha timidez foi para o espaço. Tá certo que um tempo depois passei a brigar com minha mulher, mas no início ela até ficava mais bonita e atraente. Agora eu vejo um monte de mulher gostosa na rua e chego em casa e me deparo com aquele dragão. Isso me revolta! Porque, com tanta mulher no mundo, eu escolhi logo aquela baranga? Aí me dá vontade de voltar e beber de novo, mas não tenho dinheiro. Agora, pensando aqui, quem sabe minha mulher também não é uma alucinação? Não. Me lembro do nosso casamento e da noite de núpcias muito bem. Naquela época ela era mais arrumadinha. Mas bem que podia ser imaginação minha. Se bem que se fosse imaginação, a amiga dela também seria e eu não teria uma gostosa daquela para me curar. Hoje mesmo vou procurá-la. <br />
<br />
- Mendes.<br />
- Que foi?<br />
- Você conhece a Edinéia, minha esposa?<br />
- Sim, claro. Quem não conhece aquela baranga? Hahahaha.<br />
- É Ela é bem feia.<br />
<br />
Ela existe e é baranga. Ainda não fiquei louco mas estou caminhando a passos largos para ficar. <br />
<br />
- Agora, pensando mais um pouquinho aqui, e se o Lúcio Mendes for imaginação também? Ele pode estar dizendo que os outros existem, mas todos estão na minha cabeça e se juntam para provar suas existências. Mas a quem vou perguntar? E se todos forem da minha imaginação? E se eu estiver louco, em um hospício, imaginando tudo isso? Pode ser que sim, pode ser que não, pode ser que talvez. Acho melhor para de pensar nessa coisas e continuar vivendo minha vidinha. Porque se não estou louco, com certeza vou ficar.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-10621980713435178382010-03-13T14:58:00.000-08:002010-03-13T14:58:00.211-08:00UMA MÃE<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link><style>
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<div class="MsoNormal"><i>Raphael Montechiari<o:p></o:p></i><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Ainda não era a hora do remédio. Faltavam quinze minutos. Mas lá estava ela em busca dos meninos para dar o remédio. O mais novo já estava dormindo e estava perfumadinho em seu berço. Era muito amor que ela tinha pelos filhos! Andou pela vizinhança perguntando pelos garotos e os achou em cima de uma goiabeira. O mais velho segurava o outro pelas pernas para não cair, pois já estava na pontinha de um galho para pegar uma linda goiaba.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vocês estão ficando doidos? Desçam daí agora!<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> A voz soava como uma linda melodia que os encantava e eles imediatamente paravam o que estavam fazendo para obedecê-la. Sempre tinha sido assim. Todos elogiavam seus filhos.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Como são obedientes! – dizia a vizinha do sobrado ao lado.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Mas eles não sabiam que era a voz dela que os encantava. E não havia como alguém que tivesse nascido daquele ser amoroso não obedecer. Mesmo que para os outros soasse como ordem para eles era uma cantiga. Uma doce cantiga.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vai cuidar do neném.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Já estou indo, mamãe.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Era imediato. <br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Mas com o tempo os ouvidos foram se entupindo para a voz. Não que ela não cuidasse e não lavasse um por um, com cotonetes e álcool. Assim como na época de piolhos, que ela os perseguia para a limpeza do couro cabeludo. Nessa época eles já não ouviam tão bem. Era preciso um pouco mais de energia.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vai estudar para a prova que horas hoje?<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Depois do futebol.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Nada disso. O futebol termina tarde e você não pode dormir de madrugada. Vai estudar antes e, se der tempo, assiste ao jogo.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ah não.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Está dito e não tem o que discutir. E se não atender vai apanhar.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> A voz melodiosa agora chegava com um pouco mais de esforço e era preciso insistir um pouco para que fosse atendida. E foi só piorando com o tempo. Até que eles resolveram partir para a cidade grande. Foram estudar e não havia o que ela pudesse fazer. Ela sabia que era isso que seria melhor para eles e, mesmo que sofresse, seria o melhor. Ela sofreria mais se, no futuro, eles estivessem ao seu lado e não tivessem condições de se sustentar. Era melhor eles longe e realizados, felizes e saudáveis do que ao seu lado frustrados, tristes e passando necessidade. Então ela incentivou, ajudou e soube que mais nada poderia fazer. As palavras que haviam entrado quando eles ainda a ouviam já haviam sido suficiente para que eles vivessem da melhor maneira possível. E foi com essas palavras que eles tiveram força para enfrentar a vida que agora se apresentava a eles. <br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Os mais sábios diziam que os anjos se alimentavam do amor dos humanos. E o amor daquela mulher para seus filhos era tão grande que agora, com eles longe, estava transbordando e anjos faziam fila para se alimentar. Em troca eles, depois de alimentados, cuidavam de seus filhos. Não havia sequer possibilidade de alguém, com má intenção, se aproximar daqueles jovens. Eles estavam sempre atentos e em cada esquina um se colocava para vigiar o caminho deles. O bandido que se preparava para assaltar um, certa vez, apanhou tanto, que resolveu tomar jeito na vida e começou a trabalhar. Em outra situação, um carro que vinha desgovernado em direção ao outro rapaz, simplesmente voou quando se aproximava dele e caiu a quilômetros dali. A vaga para a bolsa de estudos havia sido conseguida com méritos dos estudos do mais novo, mas o jornal com a notícia de que seriam abertas novas vagas, apareceu misteriosamente em sua mesa. Tudo alimentado pelo amor dela para com eles.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Sabe, anjo, não que isso faça diferença, mas apesar de eu amá-los tanto não parece ser recíproco.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - E nunca será. As mães possuem uma glândula produtora desse sentimento que é vinte vezes maior que em qualquer outro humano. Elas têm isso exatamente para que eles possam ter uma chance maior de sobrevivência. A deles é muito menor. Mas ainda assim te alimenta.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Como assim me alimenta?<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - O nosso amor-próprio só nos dá dois por cento de sustento. Os outros noventa e oito por cento são nos dado por outros. Pelo seu marido, pelos seus filhos e por todos que te amam. A maior parte do amor que você produz é para o próximo. Então se você se sente forte não pense que é pelo amor seu que sobeja mais sim pelo amor que vem de outros. É por isso que sempre que eles a visitam você se sente reabastecida. Por mais que eles não pareçam te amar é deles que vem a força para você continuar. É amor que eles retribuem. E saiba que eu conheço alguns anjos que se alimentam do amor deles e cuidam de você também.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - É?<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Sim. É.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Ela sorriu.<br />
</div><br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-49564900394216479042010-03-06T15:09:00.000-08:002010-03-06T15:09:00.643-08:00AO CÉURaphael Montechiari<br />
<br />
Todo dia gastava horas e horas olhando para o céu. O céu azul, lá em cima, às vezes com algumas nuvens dependuradas. Sempre quis saber de que era feito. Madeira, ferro ou porcelana? A tinta azul clara era pintada depois que a superfície havia sido bem polida, independente do material. E como as nuvens ficavam por ali? Agora eu tinha descoberto uma maneira de descobrir tudo isso. Tinha me decidido ir até o céu após ter notado que a montanha mais alta da cidade, a montanha de Lombardo, chegava até ele. Alguns dias as nuvens não eram fortes o suficiente para evitar que a montanha o furasse. Então elas ficavam por ali, cercando o furo para que quem estivesse embaixo não percebesse o acontecido. Mas eu havia percebido e iria tocar o céu e ainda ver o que tinha depois da casca azul.<br />
<br />
Já havia criado algumas explicações e a que era mais lógica era a que durante o dia, para o sol poder clarear a Terra, a casca azul era baixada e fechava a escuridão do céu. Isso porque as estrelas sozinhas não davam conta de clarear. À noite, a casca azul era retirada e deixava a escuridão entrar para podermos dormir em paz. Agora era só confirmar se isso era ou não era verdade.<br />
Peguei minha bolsa de couro, coloquei nela um cantil com água, um pedaço de carne de sol que estava esticada na mesa do quintal e duas ou três bananas maduras. Ainda peguei meu canivete, meu caderninho de anotações e uma pequena corda para o caso de alguma travessia arriscada. Vou tocar o céu e se for mesmo uma casca azul, trago um pedaço pra provar a quem duvidar. Além disso, vou escrever meu nome no céu com o meu canivete, como eu faço nas árvores do parque. Quem for tocar o céu verá que eu já estive lá antes. Vou colocar a data também para quando eu crescer mais e for lá de novo, me lembrar de como eu, com apenas doze anos, já era esperto.<br />
Ao ver que eu me encaminhava para a trilha da montanha, um senhor de óculos veio ao meu encontro e me perguntou:<br />
<br />
- Olá jovem. Para onde vais? Sabe que esse caminho leva à montanha de Lombardo?<br />
- Sim. Por isso estou seguindo por ele.<br />
- E o que vai fazer lá?<br />
- Vou para o céu? Quero tocá-lo.<br />
- Mas você acha que vai ser tão simples assim?<br />
- E por que não?<br />
- Você soube de alguém que foi lá e conseguiu tocá-lo?<br />
- Não. Perguntei aos meus pais e eles não souberam me dizer de que era feito o céu e nem conheciam ninguém que soubesse. Meu pai acha que é de porcelana e minha mãe jura que é de ferro.Polido.<br />
- Todos especulam mas ninguém sabe ao certo como chegar até lá. Mas eu sei.<br />
- Sabe?<br />
- Sim.Tenho um livro que encontrei ha muito tempo atrás que ensina como chegar até o céu e foi escrito por alguém que já esteve lá.<br />
- E a casca azul é feita de quê?<br />
- Ele não diz.Mas diz como se faz para chegar.<br />
- Mas isso eu já sei. É só ir para o alto da Montanha de Lombardo. Todo mundo sabe disso. Ela está encostando no céu e às vezes até o fura.<br />
- Mas por mais que pareça simples não é.<br />
- Não é só ir subindo a montanha?<br />
- É. Mas você pode ficar aqui e esperar o homem que escreveu o livro.Ele vai nos contar como é o céu e de que ele é feito. E depois irá nos levar para tocar nele.<br />
- Mas eu prefiro ir agora. E se ele não vier?<br />
- Ele virá.<br />
- Eu prefiro ir de uma vez.<br />
- Então não vá pela estrada principal.<br />
- Não?Por quê?<br />
- Porque o jeito mais fácil é cheio de armadilhas e confusões e você pode se perder para sempre ou então cair no Vale do Rio Negro.<br />
- E que vale é esse?<br />
- É onde todos que sobem a montanha e se perdem, acabam indo e nunca mais voltam.<br />
- Mas se eles nunca mais voltaram como sabe que foram para lá?<br />
- Simples. Está escrito no livro que encontrei.<br />
- E qual seria o caminho certo?<br />
- Está vendo a trilha principal?<br />
- Sim.<br />
- Olhe um pouco mais à frente e verás, entre duas árvores um caminho muito estreito e cheio de mato.<br />
- Sim estou vendo.<br />
- É só seguir por ele. Assim você chegará. É muito mais cansativo. Tem pedras escorregadias e espinhos. Mas ainda assim é o melhor caminho.<br />
- Muito obrigado. Eu irei por ele.<br />
- Disponha.<br />
- Quando eu voltar passo aqui para te dar um pedaço do céu.<br />
- Não é preciso. Em breve eu irei para lá também.<br />
- Então está bem. Nos vemos lá.<br />
<br />
Durante a subida fui passando por um pequena trilha e, sempre que podia, olhava para cima para ver o quão próximo eu já estava. Peguei meu caderninho de anotações e nele coloquei uma dúvida que havia me visitado naquele instante. Se o céu é o azul que vemos durante o dia e o preto cheio de estrelas que vemos durante a noite, e a terra é a parte que pisamos, como se chama o espaço intermediário entre eles? Anotei a pergunta e em cima da anotação coloquei “pesquisar” e circulei. Fechei o caderno e tomei um gole da água. Esse caderno era onde eu anotava todas as dúvidas que me vinham à mente. Depois tentava achar as respostas. Primeiro perguntava aos meus pais. Quando eles não me davam uma resposta satisfatória eu levava a dúvida ao meu professor. Só que ele não gostava muito quando o perguntava e frequentemente brigava comigo. Dizia que eu estava desviando o assunto da aula. Mas o assunto da aula não me interessava tanto quanto essas coisas mais simples. Ele falava de coisas muito distantes e eu queria saber o que estava acontecendo ao meu redor. Quando ninguém me respondia eu mesmo pensava e criava as respostas ou então fazia uma expedição para descobrir. E essa seria mais uma. <br />
<br />
Segui meu caminho e me perdi de novo entre meus pensamentos. Por quê será que tudo tem que ser do jeito mais difícil? Talvez para separar os corajosos dos covardes. Os fortes dos fracos. Mas assim como a terra e o mar, o céu deveria ser para todos. Um azul tão bonito assim não pode ser só para ver. O mar também é bonito de se ver,mas também é muito bom tomar banho nele! Os rios e cachoeiras também. E as árvores e flores?Tão bonitas para se ver, mas podemos pegar frutas nas árvores e cheirar as flores. O que o céu pode ter além da beleza?<br />
<br />
Logo na entrada do caminho estreito me arranhei com um espinho e um pouco mais a frente me arranhei outra vez.O mato estava muito alto e em determinadas partes não dava pra seguir o caminho. Os mosquitos também começavam a me picar. Mas sei que quanto mais se sofre para conseguir algo melhor é a recompensa. Quase sempre é assim. Quando eu quis comprar minha bicicleta tive que vender durante muito tempo os doces que minha mãe fazia. Debaixo de sol e chuva eu ia para a porta da igreja e para a praça da cidade vendê-los. Demorei muito tempo para juntar o dinheiro, mas quando comprei a bicicleta foi o melhor dia da minha vida. Eu andei por todas as ruas da cidade, sem faltar nenhuma. E depois voltei no sentido contrário de todas elas, sem faltar nenhuma. Como é bom se ter uma bicicleta! É por isso que eu continuo vendendo doces para poder comprar um dia uma cama macia. Soube que têm camas muito bonitas na cidade vizinha que dá pra eu comprar se eu juntar meu dinheiro. Acho que vai ser o melhor sono da minha vida.<br />
Cheguei a um lugar onde as árvores e matos me deixavam ver novamente o céu. O sol queimava minha pele. Já havia subido um bocado, mas o céu não parecia ter se aproximado um centímetro. Continuava na mesma distância. Talvez eu só iria perceber quando estivesse bem perto. Consegui ver um pedaço da minha vila e essa sim, estava bem distante.Uma insegurança me bateu. Eu segui.<br />
<br />
Um pouco mais acima encontrei um casal descendo pela trilha. Assim que me viram, cumprimentaram e paramos para conversar um pouco.<br />
- Olá menino.<br />
- Olá casal. Conseguiram tocar o céu?<br />
- Não fomos tocá-lo. Só queríamos chegar perto de Deus.<br />
- E Deus mora no céu?<br />
- Sim. Depois do azul.<br />
- E como sabem?<br />
- Todos sabem disso.<br />
- Mas alguém sabe de quê é feito o céu?<br />
- De alguma coisa forte. Porque Deus mora lá em cima. São Pedro também.<br />
- Entendi. Por que queriam chegar perto de Deusÿ?Ele não nos ouve se estivermos aqui embaixo?<br />
- Sim. Mas tem muita gente pedindo coisas para ele. O tempo todo. Resolvemos subir. Ele não estava nos ouvindo. Com esse monte de gente falando com ele, todo mundo junto, ninguém consegue mesmo ouvir nada. E como nosso pedido era muito importante e não tínhamos mais tempo, resolvemos subir.<br />
- E conseguiram?<br />
- Chegamos bem perto do céu. Não tinha mais ninguém lá na montanha para fazer pedidos. Então ficamos por duas horas falando, gritando e pulando. Tenho certeza que ele nos viu e por isso vai nos atender.<br />
- E o que foi que vocês pediram?<br />
- É a nossa filhinha. Ela está com três anos de idade e está com uma doença muito grave. Ela vai morrer e o médico da cidade disse que só um milagre poderia curá-la. <br />
- E vocês foram atendidos?<br />
- Tenho certeza que sim. Deus é muito bom e vai nos atender. Não estamos pedindo mesquinharias e nem nada de mal. Só que ele deixe nossa filha com saúde. <br />
- E se ele não responder?<br />
- Ele vai curá-la. Estamos indo para lá e já estamos programando um almoço com os tios e os avós para comemorar. Vou ver se faço um galo assado com batatas.<br />
- Bom, preciso continuar minha subida. Espero que dê tudo certo.<br />
Eles já desciam, ansiosos e gritaram.<br />
- Boa subida para você.<br />
E desceram cantando uma canção, com uma melodia alegre e belíssima. E cantavam em terças perfeitas, como se tivessem ensaiado a vida toda. A letra dizia algo sobre transpor mares e montanhas em nome do amor. A voz do casal foi sumindo e dando lugar ao canto dos pássaros e o som dos ventos nos galhos das árvores. Uma queda d’água ao fundo completava a harmonia daquele momento. Eu não quis desapontá-los, mas quando saí, minha mãe estava no funeral de uma criança que havia acabado de morrer. Seus pais tinham ido tentar conseguir a cura para a menina e tenho certeza que era esse casal. <br />
Mais pra cima encontrei um senhor de chapéu descendo a montanha. Ele parecia desapontado e caminhava com dificuldade. Quando me viu pareceu espantado, mas acenou para mim com as sobrancelhas. A pele dele era vermelha, queimada pelo sol.<br />
- Olá, senhor de chapéu. Conseguiu tocar o céu?<br />
- Não. Não foi pra isso que subi a montanha de Lombardo.<br />
- Não?E mais pra quê serve essa montanha?<br />
- Achei que serviria para eu me tornar o maior de todos.<br />
- Mas pra quê?<br />
- Menino, durante toda minha vida eu sempre fiz de tudo para crescer na vida e ser o maior e o melhor de todos. Nasci numa família muito pobre e nunca me contentei com isso. Assim que me tornei um rapazinho fui trabalhar na venda do senhor Casimiro Torres. Trabalhei duro durante muito tempo e fiz de tudo para tomar o lugar dele. Nessas horas, jovem, vale tudo! Roubar, mentir e armar contra tudo e todos.O fim justifica os meios.<br />
- E conseguiu?<br />
- Sim. Me tornei o dono da venda em dois anos. Mas eu tinha muita gente que ainda era maior que eu. Comecei a trabalhar para tomar a fábrica de tecido que abastecia a venda. Roubei, menti e armei contra tudo e todos. <br />
- E então?<br />
- Me tornei o dono da fábrica de tecidos em onze meses. Passei a desejar o cargo de prefeito. Achei que era o ponto mais alto da hierarquia de nossa sociedade. Roubei, menti, armei e até matei para conseguir.<br />
- E depois de ser prefeito?<br />
- Notei que havia alguém maior que eu. Quase tudo era eu quem decidia. Mas algumas pessoas ainda pediam ajuda aos céus das coisas que eu não podia resolver. Então decidi vir para o alto da montanha de Lombardo para descobrir quem estava por aqui, que era maior que eu. Se o encontrasse faria de tudo para tomar seu lugar e assim todos estariam sob meus pés.<br />
- E por quê está voltando?Não deu certo?<br />
- Fiquei lá por seis anos. Não encontrei ninguém por lá que poderia ser maior que eu. Então passei a receber as pessoas que lá chegavam em busca de Deus. E me apresentei como Ele. Todas falavam comigo e me faziam seus pedidos e agradecimentos. Não era tudo que eu conseguia resolver. Mas o que eu podia eu fazia.Não por bondade, mas para me manter no topo e vê-los se curvando a mim. Foi inesquecível!<br />
- E por quê está descendo?<br />
- Resolvi descer porque os pedidos estavam ficando muito difíceis e eu já não estava conseguindo resolvê-los. Quando eu não sabia como resolver eu os matava e jogava do alto do penhasco. Assim ninguém espalharia que eu, o todo-poderoso, não podia resolver todos os problemas. Mas minha saúde começou a ficar debilitada e cansei dessa vida de deus. Acho que quando vai chegando a idade, você só quer descansar. Pela primeira vez eu desisti e me achei no direito de descansar. Até Deus, depois de seis dias de trabalho descansou! Por que eu, depois de seis anos, não poderia descansar também?<br />
- E você encontrou um casal pelo caminho?<br />
- O casal passou por mim quando eu já havia desistido e quando me perguntaram sobre Deus eu disse que estava lá em cima em algum lugar.<br />
- Mentiu para eles?<br />
- Eles queriam acreditar. Sempre foi isso que todos que foram lá queriam. Acreditar que seriam respondidos. Quando me viam me cobravam uma solução imediata. Mas se não vêm ninguém eles esperam, acreditando que uma hora serão respondidos. Acho que esse Deus invisível é melhor. Sem a resposta eles vivem esperando e esperam, e esperam, e quando não são atendidos se culpam por ter pouca fé e se flagelam, e fazem promessas, e criam as mais absurdas respostas para explicarem o porquê de não terem sido atendidos. E eventualmente conseguem ser respondidos, e contam aos quatro cantos, e pagam promessas, e se flagelam, e fazem mais pedidos. E vivem assim.<br />
- Preciso seguir – eu disse.<br />
- Eu também. <br />
<br />
Segui minha subida pensando em como ele havia sido cruel. E a quantos havia enganado. Então é por isso que ninguém voltava de lá da montanha de Lombardo. E por isso o senhor de óculos disse que as pessoas iam para o tal Vale do Rio Negro. Era exatamente onde ele jogava os corpos do penhasco. E quantas pessoas com esperança e com tanta vontade de serem atendidos, por pedidos tão nobres, como o casal que eu havia encontrado, foram mortas por ele? Por sua incompetência de assumir um cargo que não era capaz!<br />
<br />
Em menos de dez minutos percebi que mais alguém se aproximava. Era um homem jovem forte, mas com uma expressão de cansaço. Ele se sentou sob uma árvore um pouco mais à frente do caminho e quando passei por ele, me chamou.<br />
- Ei, garoto. Se está procurando por Deus,desista!<br />
- Deus?<br />
- Sim. Vai perder sua viagem. Todo mundo diz que ele está no céu e eu acabei de vir de lá e nem sinal Dele.<br />
- E o que você queria com Ele?<br />
- Vingança. Só isso.<br />
- Vingança?<br />
- Você é surdo?É isso mesmo. Ou tem alguma coisa de errado?<br />
- Mas o que Ele fez pra você?<br />
- Minha esposa. Me casei com a mais bela das moças da vilaî?Nos casamos na igreja. Era setembro e o céu estava lindo.Mas nos casamos na igreja porque todos diziam que teríamos a bênção de Deus. E Ele a levou dois meses depois.<br />
- Que tristeza!<br />
- Mas eu sou muito homem e não tenho medo de ninguém. Assim que a enterramos peguei meu facão e vim pra cá procurar por ele. Durante dois meses fiquei lá em cima, bem no céu, esperando o dia em que a montanha furasse o céu. E todas as vezes que isso acontecia, eu tirava meu facão, passava no chão e o chamava. Jurei que o mataria em menos de cinco minutos. Mas o tempo passou e ninguém apareceu. Foi um covarde. Ele a levou quando eu estava no trabalho e agora nem aparece para me enfrentar.<br />
- Mas o que tem dentro do céu?<br />
- Dentro do céu?Depois que fura?<br />
- É. Depois que fura.<br />
- Sabe o que tem?Outro céu. Lá em cima.<br />
- Outro?<br />
- Sim?As nuvens ficam do seu lado, mas o céu continua lá em cima.<br />
- Então não se pode tocar no céu?<br />
- Acho que não. Não estava lá para isso.<br />
- Então preciso seguir.<br />
- Se encontrá-lo avise que continue se escondendo, porque se eu, por acaso o encontrar vou tirar as tripas dele.<br />
- Na verdade eu acabei de encontrar com Ele.Se correr você o alcança. Ele está de chapéu e é bem velho. Não está caminhando muito bem.<br />
- Então ele desceu pra fugir de mim?<br />
- Sim. Pergunte o que ele fez nos últimos seis anos no alto da montanha de Lombardo e acerte suas contas com ele.<br />
<br />
Ele já sumia da minha vista quando terminei essas palavras. Se o senhor de chapéu não foi competente para fazer o bem como Deus, então será para assumir as suas falhas. <br />
<br />
Segui minha subida, bem desanimado com a revelação de que havia outro céu depois do primeiro. Mas ao chegar lá no topo da montanha de Lombardo cheguei a brilhante conclusão: se o que eu quero é um pedacinho do céu, quando a montanha furar o primeiro céu, basta eu saltar sobre uma nuvem e pegar um pedaço dele. Não me importa o segundo. As nuvens estão penduradas no primeiro céu. <br />
Aguardei por apenas dois dias e lá estavam as nuvens cercando a montanha. O lugar estava silencioso e as árvores pareciam estar dormindo. Olhei uma pedra bem na pontinha, que era a parte mais alta. Fui pra lá e vi o segundo céu, bem distante acima. Vi que as nuvens estavam agarradas em alguma coisa que eu não podia ver. Talvez o céu fosse transparente. Mas ele estava ali segurando as nuvens. Fui bem para a ponta do penhasco e só vi nuvens abaixo. Saltei tentando tocar o céu. Estiquei bem o braço, mas não toquei em nada e caí. Caí na direção de uma nuvem bem branquinha e cheia de espuma. Deveria ser assim a cama que eu iria comprar. Diziam que era macia como as nuvens. Mas passei por entre as espumas das nuvens e elas passaram por mim. Descobri que não só o céu era uma ilusão, mas também as nuvens. E não podia tocá-las, pois eram falsas. Assim como o céu era falso.Assim como o senhor de chapéu era um deus falso. Assim como a esperança de cura da filhinha do casal era falsa. Assim como o livro que o senhor de óculos acreditava. Fiquei desiludido. <br />
<br />
Talvez todos que chegavam até esse ponto se desiludiam. Talvez fosse melhor viver com a ilusão, sem querer tocar em tudo que se vê. Com todos artifícios que se usam para explicar uma resposta não concedida por Deus eles vivem felizes e seguros confiando em alguém poderoso que está olhando por eles. E o senhor de óculos espera com paciência a volta de alguém para explicá-lo sobre todos os segredos. Mesmo que espere por toda a vida, viverá sempre com essa esperança. E o casal vai encontrar a filhinha morta, mas agradecerá a Deus que a levou desse mundo de sofrimentos. Eu poderia ser feliz com a idéia de que o céu era feito de porcelana. E que as nuvens eram macias feitas de espumas. Poderia estar agora andando de bicicleta, se eu tivesse esperado conforme o senhor de óculos me falou. <br />
Passei o resto da minha vida pensando nisso.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-27342088978246493152010-02-27T14:58:00.000-08:002010-02-27T14:58:00.680-08:00DESCONVERSAS<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link><style>
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<div class="MsoNormal"><i>Raphael Montechiari<o:p></o:p></i><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Eu fico sempre te ouvindo o dia inteiro e você nem liga pra mim. Já cansei de ficar escutando essas baboseiras que você fala o dia inteiro. É só eu te ligar e você começa a falar.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - ...<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ahh...então quer dizer que vai ficar desconversando? Falando baboseiras. Olha só. Uma coisa eu te digo. Não vou te ligar mais. Só assim vou ter paz. Fica você inventando mil desculpas pra tentar explicar os problemas de sua vidinha medíocre e sou eu sempre que fico ouvindo. Você nunca pára pra escutar. Quero ver o dia que você ficar sozinha. Ah! Aí eu quero ver. Ninguém pra te ouvir. Aí vai dar valor ao bobo aqui. E tem mais. Já está ficando velha e ninguém mais dá valor a quem está velha não. Daqui a pouco sou eu quem vai te largar. E pegar uma novinha pra ficar fazendo todas as minhas vontades. Não toma jeito não pra você ver!E vou desligar agora porque vou para o quarto dormir. Não quero mais nada com você.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> (Bate a porta do quarto)<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> No dia seguinte:<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi amor. Estou te ligando pra pedir desculpas por ontem. Eu estava muito aborrecido com as coisas que você foi me contando e no final botei a culpa toda em você. Achei que estava inventando tudo só pra me deixar triste. Mas a culpa não é sua. A culpa é daquele homem que sempre passa aqui embaixo gritando pra vender aquelas caixas de mamão. Ele me deixa nervoso e desconto em você. Mil desculpas. Nunca achei que eu fosse ficar tão transtornado. Depois vem você me contar esse monte de tragédias que vêm acontecendo. E o grito do cara vendendo mamão papaia ao mesmo tempo. Isso vai me deixando nervoso! A campainha do andar de baixo tocou ontem umas oito vezes. Soube que tem um cobrador que vem atrás do vizinho aqui de baixo. E ele finge que não está em casa pra não pagar. Mas sei que ele está. Porque eu ouço a descarga do banheiro dele e quando liga o chuveiro. E ontem, um pouco antes do cobrador chegar, ele deu uma descarga e tomou banho em seguida. Depois foi uma série de dedadas na campainha e nada. Isso tudo vai me deixando nervoso.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> A vizinha da frente está com algum problema também. Ela coloca sempre papéis no vidro da janela, como se estivesse querendo esconder alguma coisa. Depois rasga tudo e troca. Põe papéis mais escuros e de novo rasga tudo e troca. Põe papéis ainda mais escuros. E fica trocando até escurecer. Depois acende as luzes. E já está sem nenhum papel. Isso me deixa preocupado. Com todas essas coisas que você tem me contado que tem acontecido no mundo, fico preocupado mesmo. Quem sabe ela não mata pessoas e esconde os corpos? Durante o dia ela vai destrinchando os corpos e guardando na geladeira. À tardinha ela manda tudo pro lixo e depois, quando escurece, já está tudo escondido. Ela tem mesmo cara de assassina. Preciso desligar. Ela está olhando pra cá agora e pode estar querendo alguma coisa comigo.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> (Bate a porta do quarto)<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Vinte e sete minutos depois.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi. Acho que já podemos ficar de bem. Estava no quarto relembrando os bons momentos que vivemos. E o quanto eu aprendi com você. Além do que você é muito divertida e quando te ligo é minha única companhia. O que? Nós não podemos continuar juntos? Novelas! Sempre o mesmo assunto! Não fale mais isso comigo. Sabe que fico magoado. Olhe dentro dos meus olhos. Só vai ver lágrimas. Eu sei que às vezes sou rude. Mas já te contei sobre o cara que vende mamão papaia, né? Ele me deixa tenso. E a pia que não para de escorrer água. Amarrei ontem mesmo um trapo nela pra segurar. Mas quando abri hoje, para lavar minhas mãos, não consegui recolocar e tenho certeza que nunca mais conseguirei. Vou ter que viver com essa água escorrendo noite e dia, dia e noite, noite e dia. Você tem alguma idéia do que eu posso fazer? O que? Você parece que nem está me ouvindo. O que tem a ver o novo filme que vai passar hoje com isso? Tem alguma torneira vazando no filme e irão me ensinar a consertá-la? Aposto que não. Então não fale bobeiras. Já está tocando a campainha do vizinho de baixo. Vou desligar pra ouvir o que está acontecendo. Depois te ligo de novo e conto.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> (Bate a porta do quarto)<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Uma hora e meia depois.<br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> - Fale baixinho que o cobrador ainda está lá embaixo. Vou abaixar o volume. Deu uma merda do cacete. Acho que ele foi com polícia e tudo. Arrombaram a porta e pegaram o vizinho. Parece que deram uma surra nele e quebraram muita coisa por lá. Esses cobradores são muito violentos! Eles chamam a polícia e pagam a eles pra cobrar os maus pagadores. Estou até preocupado com a conta, de tanto que eu te ligo. O dia inteiro. Todo dia. Acho que vou até ficar devendo e os cobradores trarão a polícia e quebrarão minhas pernas. Acho melhor até parar de te ligar. Daqui a pouco começarão a tocar a campainha aqui e eu não vou atender. Porque eles são muito violentos. Acho até que irão arrombar depois e me bater. Mas o quanto eu puder fingir que não estou aqui vou fingir. A conta virá tão alta que não poderei pagar. É. Preciso ficar calmo. Jamais vou parar de te ligar. Sabe que é minha única companhia, né? E de que adianta eu ter pernas sãs se é a sua companhia que me faz bem? E se você estiver me falando coisas tristes é só eu mudar de canal que tudo se resolve. Boto num filme de amor e só vou ouvir coisas belas. Mas hoje vou ficar aqui, só te ouvindo, o dia inteiro. Tenho falado demais...<br />
</div><br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-5516733458899671172010-02-20T14:56:00.000-08:002010-02-20T14:56:00.809-08:00EU EXISTORaphael Montechiari<br />
<br />
E lá vou eu. Quem sabe pra onde? Quem sabe quando? Tenho a mesma dúvida de todas as pessoas no mundo. Não tenho a mínima idéia pra onde eu vou quando ele morrer. Fui criado pela sua mente e vou, sabe Deus para onde, quando ele se for.<br />
<br />
Vou me apresentar:<br />
<br />
Sou o Inácio Antão, amigo imaginário de Carlos Pontes, dono da Hospedaria Central. Ele me tem como amigo desde que surtou, na última páscoa. Tenho estado com ele, conversado e feito companhia durante todo esse tempo a esse grande miserável. Passei bons momentos com ele e outros não tão bons assim.<br />
Geralmente apareço para aconselhá-lo e preciso repetir várias vezes o conselho para que ele o faça. Ninguém mais me vê ou me ouve. Só ele. Mas eu existo. Se estou aqui te falando tudo isso é porque existo. Como disse o outro: Penso, logo existo. E eu não só penso por mim, mas até pelo Carlos Pontes. Tanto que dou conselhos para ele.<br />
<br />
Está certo que não tenho dado bons conselhos para ele, de acordo com a ética e moral da sociedade em que ele vive. Mas fui criado pela parte reprimida do cérebro de Carlos Pontes. Reprimida por essa mesma ética e moral da sociedade, criada para se ter uma suposta ordem. Mas tudo que falo e faço são coisas que a natureza humana quer fazer mas não pode, por causas das regras e leis criadas. Então não tenho culpa. Falo o que ele quer ouvir. Faço o que ele quer que eu faça.<br />
<br />
O último conselho que dei foi pra ele assaltar a casa do senhor Elivelton Moreira, o magnata da cidade. Carlos estava com problemas financeiros e há muito tempo seu salário não dava para nada. E eu sabia que ele achava essa vida uma injustiça. Eu ensinei ao Carlos Pontes a fazer bombas caseiras, a usar bem uma faca para cortar sob os braços, na altura onde passa uma artéria importante. Ensinei também como não deixar pistas de um crime e como apagá-las. Mostrei pra ele alguns exemplos de pessoas que corrompem as leis e continuam numa boa. O próprio senhor Elivelton Moreira ficou rico desse jeito corrompendo várias delas. Falei da necessidade de irmos contra tudo e todos para seguir nosso instinto natural. Expliquei que primeiro temos que estar felizes conosco e depois transmitiremos essa felicidade a outros. Mas para alcançarmos essa felicidade é extremamente necessário sermos nós mesmos. Fazer aquilo que queremos. E o que ele mais queria naquele momento era ficar rico e poder se livrar do seu trabalho medíocre. Só precisei alertá-lo desse desejo oculto e reprimido. E lembrei para ele durante todos os dias da minha vida. Falava, falava e falava. Fiz até uma rima que eu repetia constantemente no seu ouvido: “Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira.”. Imagine isso no ouvido durante vários e vários dias? Então eu o convenci.<br />
<br />
Compramos uma espingarda calibre doze, luvas e uma touca preta. Era preciso muita cautela para não ser identificado ao entrar na casa e as impressões não poderiam ser deixadas por onde passássemos. Coisas básicas que se aprende em qualquer filme. Entreguei o plano prontinho, só para ele executar. Não tinha falhas. Era perfeito. Mas o maldito covarde, no último momento, fraquejou e foi baleado pelos capangas do senhor Elivelton Moreira. E agora ele estava entre a vida e a morte. Na verdade, estava somente aguardando a morte.<br />
<br />
O senhor Moreira, muito influente, e sem nenhum receio de ferir a ética e a moral, já havia mandado um dos seus para o hospital terminar o serviço inacabado. E é ele quem acaba de entrar no quarto, sem disfarce nem nada. Vai nos matar.<br />
<br />
- Acorda, Carlos – gritei para ele desesperado.<br />
<br />
Balancei sua cama e bati na sua cara. O capanga já tirava o frasco com o veneno do bolso, puxava todo ele para uma seringa e aplicava no tubo de soro. Eu nada podia fazer para evitar.<br />
<br />
- Acorde, Carlos – gritei já mais fraco.<br />
<br />
Agora o veneno já entrava em suas veias e eu podia senti-lo me queimando por dentro.<br />
<br />
- Acorde, miserável – sussurrei, já sem forças.<br />
<br />
- Acorde....Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-88482050357411405872010-02-13T14:50:00.000-08:002012-04-02T22:04:54.471-07:00A SENHORA DE CABELO LARANJARaphael Montechiari<br />
<br />
-Olá Catarina. É você a Catarina, certo?<br />
- Sim. Sou eu. E você?<br />
- Vim recomendada por uma conhecida sua.<br />
- Conhecida?<br />
- É. Ela esteve junto de você durante os últimos anos.<br />
- Ah. Aquela senhora de cabelo laranja?<br />
- Isso.<br />
- Sim. Ela está sumida mesmo. Passava a maior parte do tempo comigo. Quando eu ia lavar roupa no rio ela ficava me olhando. Não me ajudava. Só ficava ali me olhando. Às vezes chegava perto e apertava o meu coração. E depois soprava minha barriga. Era um dor muito forte que eu sentia no coração. O frio na barriga, com seu sopro, também me incomodava bastante. Mas o aperto no coração era o pior. Eu olhava para o céu, pedindo a Deus que me desse força. Ficava assim olhando para o céu até ela parar. Depois ela ficava por ali. Me olhando.<br />
- E mais o que?<br />
- Mais um monte de coisas.<br />
- Como?<br />
- Mais um monte de coisas. Ela me mostrava umas imagens. Meu namorado e eu, na porta da capela, abraçados. Isso foi no primeiro dia que ficamos juntos. E mais outras imagens de momentos bons. Só de momentos bons. No início ela vinha duas, três vezes por semana. Depois passou a morar lá em casa. Ela fazia a cama ao lado da minha. Um colchão velho mas com lençóis bem branquinhos. Travesseiro alto. E ficava ali me mostrando imagens e lembrando histórias. E vinha apertar meu coração. Mas quando eu ia encontrar o meu namorado, ela sumia. Ela nunca se encontrou com ele. Nem sei como conseguiu tantas imagens nossas assim. Logo que eu tomava o trem para voltar já notava sua presença ao meu lado. Apertava tanto o meu coração que eu até chorava, enquanto via meu namorado acenando.<br />
- Então! Eu vim a pedido dela.<br />
- Eu não gostava muito dela. Você a conhece bem?<br />
- Sim. Fazemos vários trabalhos juntas.<br />
- Ela sempre foi muito discreta e sempre presente ali ao meu lado. Às vezes eu até a esquecia. Mas quando desocupava a mente eu percebia que ela estava ali e, ao me virar para trás, lá estava ela me olhando. Era só eu a descobrir que ela vinha com aquela mão ossuda e enrugada para apertar meu coração. E soprava frio na minha barriga. Várias e várias vezes eu chorei. Eu já contava os dias para ver o meu namorado e me livrar, nem que fosse por algumas horas, de sua tortura. Ela desaparecia. Quando estava com ele eram os melhores momentos de minha vida. Mas passavam rápidos demais. Quando eu dava por mim, lá estava eu, indo embora, com a senhora de mão ossudas e enrugadas, cabelo laranja, apertando meu coração e soprando minha barriga.<br />
- E por quê ela se foi?<br />
- Você não soube?<br />
- De que?<br />
- Da guerra?<br />
- Soube. Ele foi pra lá?<br />
- Foi. Fiquei muito triste no dia em que ele me enviou uma carta dizendo que iria. Imediatamente peguei o trem e fui vê-lo. Viajei as doze horas até sua cidade. A tal senhora estava lá, do meu lado o tempo todo, com as imagens do último encontro. Todas novíssimas. E aos poucos foi me mostrando as imagens mais antigas, já desbotadas pelo tempo. E ela lá. Apertando meu coração. Ao chegar na estação, no meio da confusão e do empurra-empurra no desembarque, ela sumiu de novo. Procurei o meu namorado e encontrei-o muito triste. Ele confirmou que iria para a guerra e não tinha outra escolha. Aproveitamos bastante nosso fim-de-semana e ele, em nenhum momento, me disse quando voltaria. Eu também não perguntei. Mas ele me prometeu mandar cartas diariamente. Eu lhe disse que quando recebia suas cartas a senhora de cabelo laranja não se aproximava de mim até que terminasse de lê-las. Em seguida ela vinha com muito mais força que o normal e apertava meu coração.<br />
- E quanto tempo ele ficou por lá?<br />
- Recebi cartas por duas semanas. E a última que me mandou falava sobre uma mulher que havia encontrado numa cidade destruída pela guerra. Todo seu pelotão havia sido bombardeado e sobraram poucos com ele. A mulher sempre o olhava de longe. Até que um dia se aproximou e disse: “Amanhã a gente foge daqui!” Na carta ele me disse tudo isso e ainda disse o quanto me amava. Eu entendi que era o fim. Chorei por várias e várias noites, mas me senti amada. Sabia que ele havia ido com ela mas era a mim que ele amava. E fiquei por muito tempo com a senhora de cabelo laranja apertando meu coração sem parar. Já nem podia ir lavar as roupas no rio porque não tinha força pra me levantar.<br />
- E como era essa mulher que ele encontrou?<br />
- Disse que era alta e bem magra. Com uma palidez mórbida. Alguns amigos já tinham esbarrado nela antes dos bombardeios. Ela caminhava no meio de todas aquelas explosões e tiros, sem nenhum medo de ser atingida. Caminhava olhando fixo para frente, às vezes escondida pelas fumaças, às vezes pelos gritos. E foi isso.<br />
- Então. Eu vim pra ficar no lugar da senhora de cabelo laranja. Agora sou eu quem vai apertar seu coração e te fazer sofrer. Às vezes ela virá. Provavelmente hoje vai dar uma passada aqui. Trará imagens do seu namorado e apertará seu coração. Mas eu ficarei a maior parte do tempo com você. Até que venha alguém para o meu lugar.<br />
- Sabia mesmo que viria.<br />
- Sim. Eu sei que me aguardava.<br />Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-47663312408353272202010-02-06T06:02:00.000-08:002010-02-06T06:02:00.581-08:00APUNHALADO<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link><style>
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<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><br />
</div><div class="MsoNormal"><i>Raphael Montechiari<o:p></o:p></i><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Era um vinte e três de janeiro, quentíssimo, como era de se esperar dessa época do ano. O tempo estava nublado, mas o mormaço podia queimar a pele de quem andasse fora da sombra. Eu, como sempre fazia às sextas-feiras, fui ver o meu amor. Ninguém poderia imaginar que naquele dia ela faria aquilo. Mas fez.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Ao chegar na porta de sua casa resolvi dar uma espiada pela janela para vê-la e, em segundos ela esticou seu braço por cima do batente da janela e com uma força surpreendente, sua mão travou no meu peito rasgando-o. Senti uma dor visceral e senti meus lábios estremecerem. Estava paralisado com o susto e só conseguia observar o que ela estava fazendo comigo. Sua mão entrando e arrancando meu coração do peito. A dor era tamanha que senti minhas pernas fraquejarem e minha vista escurecer. Achei que cairia morto em segundos, mas o resto de orgulho que sobrou me empurrou para longe dela e pude fugir. Minhas mãos apoiaram a ferida para que não se esvaísse todo o meu sangue. Minhas pernas corriam numa velocidade estonteante. Parecia que elas estavam com mais medo do que eu. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Senti que não conseguiria chegar em casa consciente e então me sentei na borda do chafariz da praça. Coloquei pra fora o excesso de dor em forma de lágrimas. Lágrimas ácidas que corroíam a pele do meu rosto e faziam um caminho marcado até a boca. Depois pingavam e eu podia ver os buracos que faziam no chão de cimento da pracinha. O senhor de calças verdes e a menina com um algodão doce, que estavam caminhando em minha direção, mudaram de rota e foram pelo canteiro em direção ao grupo de pombos, que brigavam por uma migalha do pão de cachorro quente que o guarda devorava. O dono da carrocinha de cachorro-quente conversava com ele e o guarda respondia rindo, deixando escapar pelos cantos da boca ervilhas e várias migalhas de pão. E os pombos comiam e brigavam e voavam para fugir do homem de calças verdes e da menina com algodão doce que se aproximavam abruptamente, olhando para trás, fugindo do homem de cabelos penteados, camisa bege clara riscada e sapatos pretos engraxados, que estava sentado na borda do chafariz, chorando lágrimas ácidas e com o peito todo vermelho e encharcado de sangue. E, pior de tudo, sem um coração.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">À minha volta as pessoas começaram a se perguntar o que havia acontecido com o atendente da farmácia. A senhora com um lenço azul na cabeça não conseguia disfarçar que olhava, mesmo fingindo estar conversando com a negra alta e gorda. Elas pareciam querer que eu percebesse que estavam me olhando para assim poderem perguntar o que havia acontecido. Os meninos que jogavam bola de gude ao lado pararam estáticos, em uma fileira, para assistir a cena. A senhora que batia a toalha na janela para preparar a mesa do jantar a sacudiu mais vezes do que o necessário. E eu me levantei pisando forte, tão forte que sentia que afundava o chão.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">A partir daquele dia vinte e três de janeiro passei a seguir minha vida sem o coração. Sentia dores horríveis, principalmente quando me lembrava de que ela havia feito isso comigo. Mas já não tinha coração para odiar nem para perdoar nem para amar mais ninguém Só um buraco no peito que me trazia dores durante todo o dia. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">No dia vinte e sete de janeiro ela veio até minha casa e pude perceber, já de longe, sua presença. Não sei se pelo cheiro, que eu adorava há quatro dias atrás e que agora fazia dobrar minhas dores no peito. Mas eu sabia que ela se aproximava e tranquei todas as portas e janelas. Fechei o basculante do banheiro. Era bem pequeno, mas seus olhos poderiam passar por ali. E sob a porta coloquei um cobertor enrolado, vedando qualquer passagem dela ou de sua voz ou de seu terrível cheiro. Ainda assim me senti inseguro, após ouvir as batidas na porta. Fugi pela janela dos fundos e desapareci no quintal. Passei pelo curral do Coronel Alvilar e subi pelas ladeiras do cemitério até chegar ao morro da caixa-dágua. E lá fiquei, por três dias e três noites. Até que senti que alguém se aproximava. Não me movi e ouvi os passos de três ou quatro pessoas. Elas conversavam e falavam que ali era o lugar que alguém sempre se escondia, desde pequeno, quando estava com medo. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Durante a invasão dos rebeldes, quando eu era bem pequeno, vi meu pai ser morto e minha mãe fugir com minha irmã, ainda um bebezinho, para o morro da caixa d’água. E ela me mandou segui-la. Ali permanecemos por duas semanas, até que as tropas do governo vieram e espantaram os rebeldes para as montanhas. Eu sempre lembrava disso com tristeza e conforto. Tristeza por ter perdido meu pai. Conforto por poder contar com minha mãe me guiando e protegendo. Mas agora não sentia nada. Acho que todo tipo de sentimento foi-se embora com o coração. E ele estava com alguém que não tinha coração. Talvez por isso tenha querido se apoderar do meu. As pessoas agora iam embora e eu reconhecia a voz da minha mãe. Mas eu não sentia nada por ela. Nem piedade, por talvez estar sofrendo por mim. Ela não poderia me culpar. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Segui pelas montanhas, pelo caminho que os rebeldes haviam seguido há quase dezenove anos atrás. Andei por cerca de vinte dias beirando o rio e subindo as montanhas. As corredeiras eram assustadoras e talvez fosse um bom lugar para se jogar um corpo sem coração. Fui caminhando e passando em várias cidadezinhas da região. Uma região árida e de minúsculos povoados, todos cheios de corações, olhando com piedade para um sofredor. O sol já estava bem quente quando pedi um copo d’água a uma jovem, de cabelos cortados, pretos, que estava na porta da venda onde trabalhava. Era uma tarde muito quente e quase ninguém caminhava nas ruas. Só ficavam parados nas sombras, nas portas de casa ou das lojas, provavelmente pelo calor que dentro fazia também.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">- A água não está gelada, mas também não está quente. Aguarde aqui fora se não for comprar nada. E se for comprar, entre sem as mãos. Deixe-as do lado de fora e me indique o que quiser que eu pego para você. Não suporto mais ladrões aqui na venda do meu pai.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Ela entrou e eu não quis acompanhá-la. Voltou com um copo da água mais limpa e brilhante que eu já havia visto. Quando notei, o copo estava vazio e ela sorria para mim. Pegou o copo em silêncio e entrou. Nem pude agradecer, pois ainda estava tentando me lembrar do sabor da água que eu não havia sentido. O tempo passa tão depressa que só ficamos com as lembranças. Mas dessa vez foi tão depressa que a lembrança se foi com o tempo. Ela voltou com outro copo e com outro sorriso.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">- Você estava mesmo com sede! Faz muito calor aqui e pela poeira no seu sapato e na sua roupa, você vem de longe. Desculpe achar que você era um ladrão, mas só esse mês três forasteiros já nos roubaram. Suas mãos são tão rápidas que só damos falta das coisas quando já estão longe. E, apesar de sujo, parece um rapaz de bem. Mas é melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água peça no armazém logo ali na frente. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Eu agradeci da boca pra fora. Não poderia ser de coração. Mas agradeci. Fui andando, já mais revigorado, e não pude evitar olhar para trás. Ela ainda acenava um adeus e, quando me viu olhando, fechou o sorriso e entrou na venda. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Caminhei por mais dois meses por todas as vilas, povoados e cidades da região até que as dores no peito passaram. Mesmo quando eu me lembrava dela. Do meu antigo amor. Ainda havia vestígios de dores, mas eram pouquíssimas. E havia uma casca no peito que eu não retiraria. Bastaria eu continuar andando por mais um tempo que ela cairia. E foi o que aconteceu. Com mais cinco meses de caminhada, até o final do vale pequeno, e após dar a volta pelas montanhas do norte e começar a caminhada de volta, vi a casca cedendo e dando lugar a uma imensa cicatriz que nunca mais me faria esquecer o que aconteceu.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Antes de chegar em casa passei por aquele povoado onde eu havia bebido a melhor água de toda a minha vida. Retornei àquela venda e o tempo já estava bem mais fresco. Mas eu queria beber mais um pouco daquela água. E estavam todos lá. Como se nunca tivessem se mexido. E a jovem, de cabelos pretos cortados, já sorria para mim. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">- Água?<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Eu sorri de volta e disse que sim. Mas pedi que enchesse uma garrafa e dei-lhe algum dinheiro. Ela agradeceu e pegou uma linda garrafa pintada com flores amarelas e folhas verdes. Entrou e voltou com ela cheia da melhor água que poderia existir. Trouxe também uma pequena pazinha e com ela, subitamente, furou meu peito, sem me dizer nenhuma palavra. Só com um sorriso no rosto. Abriu bem para os dois lados e com a outra mão depositou algumas sementes. Em seguida fechou bem e bateu com as costas da pazinha em cima para ficar bem fechado. Eu assistia a tudo atônito, mas não sentia dor. Pelo contrário. Foi a melhor coisa que havia me acontecido nos últimos tempos.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">-É melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água, peça no armazém logo ali na frente. <br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Agradeci com água nos olhos. Poucas mas verdadeiras. Senti algo por ela que não saberia descrever nem com mil palavras. Sei que já havia sentido algo assim antes, mas só sei. Sinto que nunca havia sentido nada assim em toda minha vida. E de lá saí com uma vontade enorme de olhar para trás, mas não queria tirar aquele lindo sorriso do seu rosto.<br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-indent: 35.4pt;">Cheguei no morro da caixa d’água e desci pelas ladeiras do cemitério. Passei pelo curral do Coronel Alvilar, entrei pela janela de trás, que ainda estava entreaberta, e me deitei. <br />
</div>Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-34061046216559484012010-01-30T06:38:00.000-08:002010-01-30T06:38:00.606-08:00SILÊNCIO QUEBRADO<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link><style>
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<div class="MsoNormal"><i>Raphael Montechiari <o:p></o:p></i><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"> Ele já estava na cama, deitado, às oito da noite. Também em uma noite como essa ele teria que tentar dormir cedo. A janela estava escancarada na tentativa de atrair um pouco de vento. Qualquer brisa que passasse por ali seria bem-vindo naquela noite de quarta-feira. Estava tão quente que, mesmo nu e com a janela escancarada, a única coisa que o mantinha vivo era o suor. Era o que o salvava. Mas a janela aberta trazia mosquitos, que não se importavam com o calor e nem com a mistura de sangue e suor que consumiam. Se fartavam do sangue dele, enquanto podiam. E mesmo naquele inferno, normalmente, ele ainda conseguia dormir.<br />
</div><div class="MsoNormal"> A vila, no entanto, era muito silenciosa à noite. Só se ouviam rumores esporádicos, quando algum ventinho resolvia bater nas folhas das poucas árvores daquele maldito lugar. E mais nada. Há alguns tempos ainda se podiam ouvir cigarras, mas elas também deixaram a vila ou morreram. A verdade é que não mais cantavam por lá. E o calor era silencioso e com um gosto de cica, que deixava a boca colando. E ele lá, esperando o sono chegar.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Ele morou toda sua vida ali, se é que aquilo era vida. Desde que seus pais se foram ele jurou a si mesmo que sumiria dali assim que pudesse. Mas durante todo o tempo em que viveu ali, nunca havia se sentido tão só como naquela noite. Seu filho havia partido cedo, para Urais, levar o novilho para vender. Quando o compraram, ainda tinham a esperança de que ele cresceria e se tornaria um boi tão grande, que poderiam conseguir dinheiro para comprar uma casa em Tarracho ou até em Rio Dourado. Mas o animal estava definhando e, se não vendessem o mais rápido possível, não teriam nada. Os vizinhos já o olhavam e se preparavam para matá-lo e saciar a fome a qualquer momento. Mais uma semana ali e o perderiam para aqueles famintos. Vendendo-o conseguiriam ao menos um dinheirinho para alugar uma casinha em alguma outra cidade, onde se possa viver, e tentar recomeçar. O dinheiro daria para umas três ou quatro semanas. Mas era o que podiam fazer. Depois decidiriam o que fazer. Era a última esperança.<br />
</div><div class="MsoNormal"> O rapaz havia saído com o novilho às duas da tarde e só voltaria às dez horas do dia seguinte. Então partiriam e ninguém mas ouviria falar deles. Era tudo que ele queria. Talvez um pouco mais de vento também não faria mal. O cheiro de madeira velha e de naftalina se misturavam com o cheiro de suor e com as coceiras. Eram os últimos lençóis limpos. A vila não tinha água para se desperdiçar com banhos ou lavagens de roupa. O único poço, ainda com água, era disputado por todos os moradores da vila e a água só poderia ser usada para beber ou cozinhar. Qualquer um que usasse para outro fim seria proibido de voltar ao poço. Então toda segunda quarta do mês, todos os moradores da vila partiam, como que em romaria, para São Pedro das Águas Claras. Eles iam para lavar suas roupas e tomar banho no rio límpido que cortava a cidade. Era uma viagem de dezessete horas de ida e dezenove de volta. E era o dia em que a cidade ficava deserta. Só ele ficou. Pela primeira vez. Até os velhos, doentes, incapacitados iam. Carregados ou se arrastando. Eles não permaneciam ali. Não sei se era pela necessidade de higiene ou pelo medo. <br />
</div><div class="MsoNormal"> Diziam que nessas noites, enquanto os moradores iam se banhar, os mortos vinham para a vila se banhar de vida. Passeavam pela rua principal, se divertiam e tomavam conta das casas, relembrando o tempo em que eram vivos. Mas até então, ninguém havia ficado para confirmar se era ou não verdade. E ele se lembrava disso tudo. Deitado ali, sujo, suado e esperando a última noite naquela vila passar voando. Ele achou que dormiria rápido, como era de costume. Logo chegaria a manhã trazendo o seu menino, com o dinheiro do novilho. E partiriam para nunca mais voltar. Aquela vila cheirava a morte e quem ali fica, só está à espera dela. Não há mais o que se esperar de um lugar como aquele. Pra se ter uma idéia a parte que mais crescia na cidade era o cemitério. Já estava chegando até à praça e ia invadindo as casas abandonadas. O que ele mais queria era viver um pouco, coisa que não fazia há muito tempo, desde a época que lá havia pasto, água e muito gado. A plantação de milho abastecia até as cidades vizinhas e era uma vila que em breve se tornaria uma cidade. Mas em algum momento, que ele não se lembra, algo aconteceu e tudo passou a dar errado. A chuva não veio, o pasto queimou, o gado morreu e a água, dos poços, se secou. Ele tinha durado muito tempo ali. Precisava viver. E se aquilo ali já não era a morte, estava longe de ser vida. <br />
</div><div class="MsoNormal"> A casa era enorme. Quartos grandes e vazios. Cheios de calor e sem vento. Poeira e solidão preenchiam os outros cômodos da casa, inclusive a sala, logo na entrada. A porta da frente não fechava direito, por conta das dobradiças enferrujadas. Algumas janelas não mais abriam, pelo mesmo motivo. As torneiras estavam inutilizadas e eram simples enfeites. O banheiro guardava tábuas, uma grande mesa velha e tijolos. Sem água ele era inútil. Há cinco anos não corria água nos canos da vila. Antes disso a água era jogada para as caixas por bombas manuais. Recolhiam a água farta dos poços que toda casa tinha. Isso até eles secarem e só restar o poço da casa da senhora Dulce Marrone. Ela já havia morrido há uns vinte anos atrás e sua casa estava abandonada. Mas o poço ainda estava vivo e o único que tinha água na vila. Era o poço que todos dividiam.<br />
</div><div class="MsoNormal"> O sono simplesmente não chegava. Um ruído chegou aos seus ouvidos, após ter cortado todo o ar quente que tomava conta daquele ambiente. Era algo como uma batida. Mesmo de olhos fechados ele podia vê-las, tamanho era o silêncio da noite. Batidas empoeiradas, de madeira. E eram constantes. Seriam passos? Ele se arrepiou e se lembrou que não havia mais ninguém ali, além dele. Seus olhos estavam fechados e começou a se sentir gelado. Estava inerte para que, quem quer que se aproximasse, não o notasse ali. As batidas pareciam se manter em um mesmo lugar. Não, não eram passos. Passos se aproximam ou se distanciam. Aquela batida estava vindo sempre de uma mesma direção. A casa era todo mapeada em sua mente e ele sabia exatamente que a batida vinha do segundo quarto, depois do banheiro. A batida ecoava pelos corredores, entrava pela porta, refletia no espelho e vinha de encontro aos seus ouvidos, na cama. A janela, à sua direita, absorvia os restos do som e os lançava para fora. Sentiu calafrios ao se lembrar da história das almas. Será que estavam chegando? A batida continuava e ele tentava imaginar o que estariam fazendo. Talvez pregando as janelas e portas para que ele não fugisse quando o encontrassem. Sentiu um calafrio, o mais forte que já havia sentido na vida. Ainda de olhos fechados ele podia sentir que alguém o observava. E esse alguém estava sentado na cadeira ao lado da janela, onde estava esticada sua camisa, calças e cinto. Ele estremeceu em seguida. Uma senhora, corcunda, com um vestido azul remendado, esperando ele abrir os olhos para cantar uma canção triste. Talvez querendo saber o que um vivo fazia na noite dos mortos. Talvez uma menina, que havia morrido de tuberculose há muito tempo. Pálida e com os olhos fundos, ninando uma boneca de porcelana. Ele estava imóvel e não teve coragem de abrir os olhos. Na janela aberta já não entrava vento algum. A tensão o pressionava contra a cama. Ele sentiu falta dos mosquitos e sentiu que mais alguém o espiava pela janela, porque o vento não chegava. Eles se perguntavam o que ele fazia ali. A notícia já devia ter corrido por toda a vila e estavam querendo vê-lo. <br />
</div><div class="MsoNormal"> A batida parou por alguns instantes e recomeçou em outro ponto da casa. O sono estava longe de chegar. Ele começou a ouvir estalos. Sabia que se abrisse os olhos e encarasse uma alma morreria de medo. Na hora. E elas estavam ali. Naquele momento ele soube que aquele tinha sido o maior erro de sua vida. Talvez o último. Ter ficado ali, naquela noite, foi uma escolha insana. Poderia ter ido com o filho para Urais ou acompanhado, como fazia há anos, o povo da vila. Mas sua descrença de que algo acontecia naquelas noites, agora iria matá-lo. <br />
</div><div class="MsoNormal"> Algum tempo depois, ele notou que o vento havia voltado a bater e os mosquitos, para sua alegria, o picavam como antes. Será que haviam ido embora? Talvez os da janela. Mas na cadeira tinha alguém o vigiando. Com certeza! Um cheiro de fumo, bem de leve, surgiu no ar. Seria um velho, barbudo, com um chapéu de palha? Com seu cachimbo? Dando baforadas no ar? Sim. Um cheiro de fumo. Apertou os olhos com toda força e passou a prestar atenção na batida.<br />
</div><div class="MsoNormal"> O som pareceu ir ficando mais claro. Com a atenção voltada para a batida ele percebeu que não eram batidas. Era um som de algo sendo roído. Estava mais próximo e por isso ficou mais claro. Sim. Ratos! Na última semana ele havia matado alguns que apareceram, para comer o arroz que o governo havia mandado. Eles haviam sumido junto com a comida e voltaram com ela. E agora estariam roendo madeira para fugir dessa vila antes que a morte os apanhasse. Sim. Poderia abrir os olhos agora e rir de tudo isso. Contaria ao seu filho o medo que havia passado e como as histórias o influenciaram, a ponto de quase ter se borrado de medo por conta de alguns ratos. Todos ririam e eles estariam em Rio Dourado tomando chá de ervas e comendo torresmos, felizes. Teriam pelo menos uma lembrança bem humorada da vila maldita, que só tinha solidão, fome e tristeza. Então se preparou para abrir os olhos. Respirou fundo, relaxou a face e sentiu que o ar tinha parado de novo. Há algum tempo os mosquitos não o mordiam. Outro daquele calafrio percorreu seu corpo e a presença de alguém no quarto era certa. O barulho havia parado. A sensação de que a janela estava cheia de curiosos o olhando foi mais forte do que nunca. Estava estático e ouvia o seu coração batendo forte. Passou a ouvir passos calados, como de crianças descalças. Seco e agudo. E a porta rangeu. Ouviu uma troca de olhares. Tensionou novamente a face e fechou os olhos, apertando-os com toda a força. Fora isso, nada mais mexia nele. Passou a mentalizar os movimentos da próxima ação. Levantaria e voaria pela janela. Só iria parar de correr quando estivesse bem longe daquele maldito lugar. Novamente um silêncio. E, enfim, uma respiração à sua esquerda, bem perto da porta. Sentiu uma baforada no braço e estremeceu-se todo. Ele já se preparava para se levantar e correr, a toda velocidade, quando foi surpreendido por um ganido, vindo da mesma direção. Todo seu plano foi por água abaixo pois lhe faltou força nas pernas. Elas começaram a tremer e um grito de pavor fugiu pela sua boca. Suas mãos, como que protegendo o rosto, viraram-se na direção do barulho. Ele abriu os olhos e, ao seu lado, estava Bonachão, o maldito vira-latas da senhora Dulce Marrone, abanando o rabo para ele. Respirou aliviado e imaginou que quase havia morrido por causa de um cão. Imediatamente virou o rosto para a cadeira, que ficava ao lado da janela e nos viu lá. Eu, sentado na cadeira, fumando meu cachimbo e todos os outros na janela o espiando. Desde então ele passou a visitar a vila todas as segundas quartas do mês conosco.<br />
</div><div class="MsoNormal"> <br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div><br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-50889197401341981362010-01-23T23:01:00.000-08:002010-01-23T23:01:00.205-08:00O VENDEDOR DE IDÉIAS<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><o:smarttagtype name="PersonName" namespaceuri="urn:schemas-microsoft-com:office:smarttags"></o:smarttagtype><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CRaphael%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link><style>
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<div class="MsoNormal"><o:p><i> </i></o:p><i>Raphael Montechiari</i><br />
<br />
</div><br />
<div class="MsoNormal"><br />
</div><div class="MsoNormal">- Bom dia. Pode chegar cliente.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Bom dia. Olhei a placa na fachada e fiquei curioso. Como funciona seu negócio?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Meu negócio? Vou te explicar, senhor. Sente-se aqui, por favor. Aí, não. Essa cadeira ainda está <st1:personname productid="em testes. Sente-se" w:st="on">em testes. Sente-se</st1:personname> nessa aqui. Isso.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Então. Quais idéias você vende?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Olha, eu vendo idéias de todos os tipos. Vou lhe dar alguns exemplos. Conhece aquela grande flor de lótus esculpida na praça? Fui eu que vendi a idéia para o escultor. O prefeito queria uma bela escultura na praça e nada do que ele sugeria agradou ao prefeito.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Então ele te procurou?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim. O garoto que entrega os folhetos tem feito muito bem o seu trabalho. O escultor me disse que já tinha gastado todo seu arsenal de idéias e já estava saturado do prefeito, quando resolveu me procurar, após receber um panfleto da minha loja.<br />
</div><div class="MsoNormal">- E o prefeito gostou da sua idéia?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim. Assim que dei as opções das idéias para o escultor ele escolheu essa. De cara. E adorou! Me pagou com gosto e disse ter certeza que o prefeito iria adorar a idéia. E foi o que aconteceu.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Muito bom. Mas o quê?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Outras idéias?<br />
</div><div class="MsoNormal">- É. Mas que outras idéias você vendeu?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Já reparou que de uns tempos para cá não se ouvem mais latidos de cachorros? Fui eu quem resolveu esse impasse. Estava havendo uma guerra entre os moradores que tinham cães e os outros que não suportavam mais os latidos. Apareceram alguns cães mortos e alguns vizinhos mortos <st1:personname productid="em seguida. Virou" w:st="on">em seguida. Virou</st1:personname> caso de polícia. Foi uma verdadeira guerra.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim. Ouvi falar.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Então. O prefeito já tinha tentado propor uma proibição para cães, mas não foi bem sucedido. O partido pró-cães não deixou passar essa proposta e o prefeito foi ameaçado de morte. Depois propôs um local isolado para os cães dormirem à noite, bem longe da cidade. Também não foi bem sucedido. Os donos queriam eles juntos, além de quê alguns cães serviam para vigiar as casas durante a noite. O prefeito ainda tentou criar uma série de resoluções como doar protetores auriculares para a população e até construir um grande hotel isolado para quem estava sendo incomodado. Também não deu certo. O partido contra-cães não deixou passar as propostas e o prefeito foi ameaçado de morte. <br />
</div><div class="MsoNormal">- Que situação!<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim. Então o prefeito teve a melhor idéia que poderia ter tido: veio me procurar.<br />
</div><div class="MsoNormal">- E então?<br />
</div><div class="MsoNormal">- O prefeito quis ouvir todas as idéias e pagou por todas elas. Até porque as primeiras não eram tão boas assim. <br />
</div><div class="MsoNormal">- E qual foi a escolhida?<br />
</div><div class="MsoNormal">- A prefeitura doa soníferos para os cães que não são de guarda e os donos devem dar aos cães toda noite. Caso contrário uma multa é aplicada ao dono. Para os cães de guarda, que precisam estar alerta durante à noite, foi dada a seguinte solução: cortar as cordas vocais do animal. Uma cirurgia rápida, indolor e segura. Assim os moradores pró-cães poderiam ter seus amigos e guardas, sem incomodar aos outros vizinhos.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Bravo! Bravíssimo! E quanto te pagam?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Depende da idéia. Quando me passam o que querem eu penso em várias soluções e, de acordo com a qualidade da idéia, o preço é maior.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Muito bom. Você conta as idéias e eles escolhem a melhor, cada uma com um preço.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Nada disso! Eu escrevo as idéias em papéis diferentes e anoto o preço de cada uma. Assim, de acordo com meu julgamento, eu ponho os preços nas idéias e o cliente escolhe qual quiser. Mas só leio a que eles comprarem. Assim não corro o risco de dizer as idéias e o cliente não pagar. Ninguém come a maçã e decide depois se vai pagar ou não. Estamos numa cidade cheia de malandros e é preciso ser mais malandro pra se dar bem. <br />
</div><div class="MsoNormal">- É verdade. Mas e se a idéia não agradar.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Eu vendo as idéias. Se gostar ou não é um risco que se corre. Ali está o cartaz: não aceitamos devoluções. Porque depois vem um malandro, diz que não gosta e não paga. Aí você vai ver ele colocando ela <st1:personname productid="em pr£tica. Comigo" w:st="on">em prática. Comigo</st1:personname> não! Quer a idéia? Pague que eu a digo. Senão não tem negócio. <br />
</div><div class="MsoNormal">- Está certo. Mas me diga: como tem tantas idéias assim?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Essa foi uma idéia que tive há onze anos atrás e mudou minha vida. É claro que é o segredo do meu sucesso e não passaria pra ninguém se eu não estivesse me aposentando. Mas não vendo barato.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Eu pago quanto quiser.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Então eu quero mil e quinhentos florins mais o seu cavalo que está ali na porta. Mas já sabe. Não aceito devolução. Se não te servir, lamento muito.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Tudo bem. Aqui está o dinheiro. E o cavalo já é seu.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Heleno!<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim senhor.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Leve o cavalo para o curral. Agora ele é meu.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim senhor.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Bem. Vejamos: cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos trezentos, quatrocentos, quinhentos...cem, duzentos, trezentos, quatrocentos e quinhentos. Certinho. Tenho que conferir tudo. Como já disse, essa cidade está cheia de malandros.<br />
</div><div class="MsoNormal">- E então?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Olha. Vou te explicar como funciona: as idéias vêm na cabeça de todos nós. É como uma onda de rádio em uma freqüência definida. Se ficarmos pensando em um determinado assunto é porque estamos sintonizando em uma determinada freqüência. E todas as idéias daquela freqüência, ou seja, daquele assunto, vão entrar e vamos vislumbrá-las. Aí então vem o segundo passo.<br />
</div><div class="MsoNormal">- E qual é o segundo passo?<br />
</div><div class="MsoNormal">- É preciso entender muito bem. As idéias passam como ondas e ficam por pouco tempo. Em seguida saem e dão lugar a outras. Se você não escrever tudo, esquecerá. São poucas as que ficam guardadas. E, o que é pior, ela vai para mente sintonizada ou fica pelo espaço vagando até que alguém a sintonize. Algumas grandes idéias podem ter passado por nossas cabeças e ter até nos animado. Mas se deixamos de anotar nunca mais nos lembraremos dela e alguém, que anotá-la, vai colher os frutos. Também não adianta anotá-la e não fazer nada. Porque a idéia continuou pelo espaço e se alguém a sintonizar e executá-la antes, você já perdeu. É quando falamos: “eu também tive essa idéia, mas não a coloquei <st1:personname productid="em prática. Agora" w:st="on">em prática. Agora</st1:personname> ele está rico!”<br />
</div><div class="MsoNormal">- Já passei por isso.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Todos já passamos. Isso quando não a ignoramos e falamos: “essa idéia alguém já deve ter tido!”. Com certeza se alguém não a teve, terá um dia. Alguém com atitude irá colocá-la em prática.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Ótima idéia sua. Passarei a fazer o mesmo.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Prefira a noite e a madrugada. É quando poucas mentes estão segurando idéias. Elas estarão todas soltas pelo ar e você terá várias opções. <br />
</div><div class="MsoNormal">- Estão todos dormindo, não é?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Sim. Mas mesmo dormindo as idéias entram. Mas é muito difícil alguém se lembrar de um sonho e encará-lo como idéia. E elas passam muito rápido quando estamos dormindo. Entra idéia atrás de idéia e nada fica.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Ótimo. Farei isso. Agora preciso ir. Já me vieram à mente algumas idéias sobre esse tipo de negócio. De venda de idéias. Preciso anotá-las.<br />
</div><div class="MsoNormal">- Idéias sobre venda de idéias? Como seria a idéia?<br />
</div><div class="MsoNormal">- Uma delas, a melhor, custa duzentos florins. Quer comprá-la? <br />
</div><br />
<div class="MsoNormal"><br />
</div><br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-41856603928778988542010-01-16T16:01:00.001-08:002016-08-09T21:57:01.712-07:00VIZINHOS<i> Raphael Montechiari</i><br />
<br />
<br />
Sempre agi da melhor maneira possível para poder conhecer o Paraíso. Sempre tratei bem todos os meus tios e minha avó Denize Valdachio. Apesar das reclamações dela sobre as rosas. Sempre que íamos visitá-la, o jardim estava cheio delas. Vermelhas, rosas, amarelas e brancas. E todas deliciosas. Comia quantas eu podia até ela descobrir e me bater. Batia com uma varinha de goiabeira. E quando eu a via saindo da porta já gritando “Vou te pegar, seu moleque!” eu comia o máximo de rosas que podia e não parava. Ela vinha em passos lentos pelo caminho entre as roseiras e desviava um pouco a direção para arrancar um pequeno galho da goiabeira. Então voltava à rota anterior, já retirando as folhas, deixando a vara limpinha e lisa para que quando entrasse em contato com minhas pernas branquelas, não deixasse nenhuma dúvida de que ela me havia feito sentir dor. E eu continuava, cada vez mais acelerado, a comê-las. Estático. Só esperando ela chegar e me punir com as varadas. E como doía!<br />
<br />
Isso não me levaria para o inferno. Mas o desejo de matar o senhor Juliano Carreras me levaria direto para lá. Minha mãe dizia que só de pensar certos pecados eles já estavam sendo cometidos. E eu pensava muito nesse pecado. Fui várias e várias vezes me confessar para poder me livrar dele. Mas no dia seguinte, esse mesmo pecado já acordava na minha cabeça. Então, pela manhã, ia até o padre me confessar de novo. E na outra, e na outra e na outra. Até que o padre me disse que eu deveria contar para ele quem eu queria matar. Talvez para tentar livrar o Senhor Juliano Carreras. Desconversei e disse que não era ninguém. A vontade de matá-lo foi maior que a de ir para o Paraíso. E desde então só tenho pensado nisso.<br />
Desde que ganhei meu saxofone fui sempre muito dedicado. Bem antes de ganhá-lo minha mãe havia me presenteado com cinco discos de Jazz que eram do meu pai. Ele tinha largado minha mãe para ir morar com outra mulher em uma cidade bem distante. E os discos ficaram. E eu os herdei. Charlie Parker era o melhor deles. O disco “The Complete Savoy Sessions” tocava diariamente na minha vitrola, que na verdade não era minha, mas da minha mãe. Mas eu a chamava de minha porque todas as coisas que eram da minha mãe ela dizia que eram minhas também. Mas as minhas não eram dela. Os discos eu não emprestava para ela ouvir, apesar de nunca ter me pedido. O saxofone também não a deixaria tocar. Primeiro porque não sabia. E segundo porque era meu e eu não iria dividi-lo com ninguém. Nem mesmo com minha mãe. <br />
O fato é que o Charlie Parker me levou a treinar diariamente o saxofone. Eu tocava todas as músicas do disco. Do início ao fim. Os temas, improvisos e até os ruídos mais discretos que as chaves do saxofone faziam na gravação. A interpretação dele era algo divino. O Charlie Parker deve ter ido para o Paraíso. Talvez ele tenha podido estudar seu saxofone sem ter ninguém para atrapalhá-lo. Talvez ele tenha até comido todo o roseiral da avó, mas ele podia estudar o solo de “Donna Lee” e não ser perturbado pelo vizinho. E por isso ele não tenha querido matar ninguém. Talvez não.<br />
<br />
O Senhor Juliano Carreras morava no apartamento ao lado do meu. Após eu ter seguido a carreira de músico e ter começado a tocar na banda da cidade, passei a morar sozinho num apartamento e comecei a receber vários convites de músicos e cantoras famosas. Rosa Lucinha foi uma delas. Esteve pessoalmente no meu apartamento para me falar do seu desejo de me levar para tocar com ela. Rosa Lucinha era a cantora mais famosa da época e tinha todos aqueles seguranças quando me chamou lá da entrada. Subiu a escada do pequeno prédio em que eu morava, no terceiro andar. E todos os vizinhos admiravam em que ponto eu havia chegado ao ter visitas tão ilustres. Mas eu tive que recusar o convite de Rosa Lucinha, apesar de ter percebido que os seguranças dela não gostaram muito da minha decisão. <br />
O fato é que o Senhor Juliano Carreras não gostava de ser perturbado pelo som do meu saxofone. E eu precisava estudar mais do que nunca, já que agora era músico profissional e tocava na banda da minha cidade, além de ter sido convidado por Rosa Lucinha para acompanhá-la em sua turnê nacional e internacional. Eu recusei, pois queria fazer o teste para entrar na Orquestra dos Fuzileiros Navais. Esse era meu objetivo principal. Seria um músico militar, com todos aqueles uniformes e um chapéu exclusivo da Orquestra dos Fuzileiros Navais. As músicas que eles tocavam eram todas muito bonitas, mas quando eu entrasse iríamos tocar só as músicas do Charlie Parker. Inclusive as músicas do outro disco que eu havia visto na loja. Eu teria mais dinheiro e poderia comprar o outro disco do Charlie Parker e treinar todas elas. E toda a Orquestra dos Fuzileiros Navais iria executá-las.<br />
Mas para isso eu precisava estudar muito. Acordava às seis da manhã, tomava meu café e começava a estudar, música por música, solo por solo. Tocava o dia inteiro até escurecer, quando minha barriga me lembrava que eu precisava comer. Nos finais de semana ia tocar na banda da minha cidade para ter dinheiro para pagar meu aluguel, pois ninguém pode viver sem trabalhar. Minha mãe me ensinou isso muito bem e ainda por cima comprou o outro disco do Charlie Parker para me dar no Natal. Eu ouvi seiscentas e vinte e duas vezes sem parar e me apaixonei pelo disco. Naqueles dias eu não dormi, nem comi e nem fui tocar na banda da cidade. Só ouvi o disco por seiscentas e vinte e duas vezes. O Senhor Juliano Carreras provavelmente não gostava do Charlie Parker porque, depois disso, começou a me empestear a mente. Me disse para estudar meu saxofone na puta que pariu e ameaçou quebrar minha vitrola. Minha mãe, nessa época, já havia deixado de vez a vitrola comigo, pois não ouvia nada nela. A vitrola também já tinha sido do meu pai que, quando largou minha mãe e foi morar numa cidade bem distante com outra mulher, a deixou em casa. Acho que não gostava muito dela. Eu jamais deixaria uma vitrola e cinco discos tão bons quanto aqueles para ir morar tão distante assim. Ele poderia ter ficado conosco e assim eu o ensinaria a tocar saxofone e mostraria os principais segredos de Charlie Parker. Também o levaria para me assistir tocando na banda da cidade e tenho certeza que ele não iria se arrepender.<br />
<br />
Eu passei a ter que ir para o Morro da Consolação estudar. Era um morro bem alto de onde dava para ver toda a cidade. Ele era chamado de Morro da Consolação porque há muito tempo atrás havia ali uma igreja que era da virgem da Consolação. Mas durante a revolução destruíram-na e atearam fogo nela e nas casas vizinhas. Desde então ninguém mais morou por lá e retiraram os escombros para que ninguém mais se lembrasse desse dia. Mas todo mundo se lembra porque até hoje o chamam de Morro da Consolação. E era lá que eu tocava meu saxofone. Parecia que eu havia desaprendido tudo. Estava bem destreinado e acho que quando tocava com o Charlie Parker eu ia bem melhor. Também ia bem quando tocava com a banda da cidade. Mas ali sentado, sozinho, parecia não conseguir me concentrar e não saía nada de bom. Só que eu precisava estudar. O teste para a Orquestra dos Fuzileiros Navais seria em breve e eu precisava estar preparado. E como eu não podia mais estudar em casa, pois havia enfurecido o Senhor Juliano Carreras, teria que estudar por ali mesmo. E assim foi durante treze dias. A cidade toda ouvia o som do saxofone, mas sem saber de onde vinha. Acredito que alguns achavam que seria uma dádiva de Deus para confortá-los pelo sentimento de perda da Igreja da Consolação. <br />
As músicas que eu tocava ainda estavam longe de serem aquelas que eu tocava quando estudava em casa. E agora eu ouvia muito baixo os discos em casa para não perturbar o Senhor Juliano Carreras. O problema é que ele chegava de madrugada, bêbado e com umas negas, que falavam alto e riam o tempo todo. Depois ficavam de gritarias e pulando em cima da cama, fazendo-a ranger tão alto que me tirava o sono. E eu precisava acordar cedo no outro dia para tomar meu café, pegar meu saxofone e subir o Morro da Consolação para estudar. Por várias vezes eu suportei aquela situação até que um dia de manhã bati em sua porta, depois de uma noite de baderna, e revelei para ele minha insatisfação com a situação, lembrando-o ainda que eu estava estudando no Morro da Consolação somente para não o incomodar mais. Na verdade ele nem me deixou chegar na metade do que eu queria dizer. Me mandou para a puta que pariu por acordá-lo tão cedo e disse que se eu voltasse a incomodá-lo, me daria uma porrada dentro da cara.<br />
Seu Juliano era bem grande, não muito forte, mas com braços e pernas compridas e ossudas. Já estava um pouco careca e tinha uma cara de bravo. Quando me ameaçou e fechou a porta na minha cara eu decidi não incomodá-lo mais. Uma porrada dentro da cara de um sujeito grande como ele deveria machucar pra cacete. Então achei por bem ir dormir no Morro da Consolação todas as vezes que ele fizesse suas farras. Fiquei um pouco assustado em saber que ele iria para o inferno. E ele com certeza iria, pois uma pessoa que dá uma porrada dentro da cara da outra não teria outro fim. Minha mãe já havia me dito que só de pensar certos pecados você já os havia cometido. Passei a ter muito medo dele depois que esses pensamentos me visitaram. Eu havia conhecido uma pessoa que iria para o inferno e que conheceria o demônio. <br />
Não gosto muito de pensar essas coisas porque me deixam confuso e nervoso. Porém refletindo um pouco mais, descobri que meu próprio pai iria para lá também. O padre já havia dito na missa que o adultério é pecado. E quando meu pai fugiu com outra mulher para uma cidade muito distante, ele cometeu adultério. E ele está mais perto do inferno do que o Senhor Juliano Carreras. Ainda largou uma vitrola, cinco discos e sua família para trás.<br />
<br />
O fato é que numa certa tarde de estudos no Morro da Consolação o tempo fechou rápido e, antes que eu me desse conta, caiu um aguaceiro tão pesado que eu nunca tinha visto igual. Como eu não tinha a mala para guardar o meu saxofone, tentei escondê-lo debaixo da minha camisa. Mas ela já estava toda ensopada e vi escorrer água por dentro dele e por todas as suas chaves. Então corri o mais depressa que pude. Passei por debaixo da cerca de arame farpado e peguei a pequena trilha que levava de volta à cidade. A trilha estava muito molhada e escorregadia e, na primeira descida, eu caí e meu saxofone caiu embaixo de mim deslizando pelo barranco. A chuva não dava trégua e nem se podia ver a cidade de tão branca que estava a vista. Era muita água e meu saxofone agora havia caído numa grande poça de lama. Tive que descer pelo barranco segurando pelas moitas de capim até ter altura suficiente para saltar. Consegui resgatá-lo e cobri-lo novamente com minha camisa. Ao chegar em casa notei que haviam quebrado quatro chaves do saxofone e que eu deveria voltar para achar os pedaços. Fiquei até escurecer sob aquela chuva, procurando no barranco do Morro da Consolação pelas quatro chaves do saxofone, mas não encontrei nada. Voltei por mais nove dias seguidos e passei os nove dias inteiros procurando pelas quatro chaves que haviam quebrado. Por fim, descobri que não haveria jeito de encontrá-las e descobri qual seria a solução: eu tinha que matar o Senhor Juliano Carreras.<br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-60187146950903890282010-01-16T16:01:00.000-08:002016-08-09T21:56:39.806-07:00VIZINHOS<i> Raphael Montechiari</i><br />
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Sempre agi da melhor maneira possível para poder conhecer o Paraíso. Sempre tratei bem todos os meus tios e minha avó Denize Valdachio. Apesar das reclamações dela sobre as rosas. Sempre que íamos visitá-la, o jardim estava cheio delas. Vermelhas, rosas, amarelas e brancas. E todas deliciosas. Comia quantas eu podia até ela descobrir e me bater. Batia com uma varinha de goiabeira. E quando eu a via saindo da porta já gritando “Vou te pegar, seu moleque!” eu comia o máximo de rosas que podia e não parava. Ela vinha em passos lentos pelo caminho entre as roseiras e desviava um pouco a direção para arrancar um pequeno galho da goiabeira. Então voltava à rota anterior, já retirando as folhas, deixando a vara limpinha e lisa para que quando entrasse em contato com minhas pernas branquelas, não deixasse nenhuma dúvida de que ela me havia feito sentir dor. E eu continuava, cada vez mais acelerado, a comê-las. Estático. Só esperando ela chegar e me punir com as varadas. E como doía!<br />
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Isso não me levaria para o inferno. Mas o desejo de matar o senhor Juliano Carreras me levaria direto para lá. Minha mãe dizia que só de pensar certos pecados eles já estavam sendo cometidos. E eu pensava muito nesse pecado. Fui várias e várias vezes me confessar para poder me livrar dele. Mas no dia seguinte, esse mesmo pecado já acordava na minha cabeça. Então, pela manhã, ia até o padre me confessar de novo. E na outra, e na outra e na outra. Até que o padre me disse que eu deveria contar para ele quem eu queria matar. Talvez para tentar livrar o Senhor Juliano Carreras. Desconversei e disse que não era ninguém. A vontade de matá-lo foi maior que a de ir para o Paraíso. E desde então só tenho pensado nisso.<br />
Desde que ganhei meu saxofone fui sempre muito dedicado. Bem antes de ganhá-lo minha mãe havia me presenteado com cinco discos de Jazz que eram do meu pai. Ele tinha largado minha mãe para ir morar com outra mulher em uma cidade bem distante. E os discos ficaram. E eu os herdei. Charlie Parker era o melhor deles. O disco “The Complete Savoy Sessions” tocava diariamente na minha vitrola, que na verdade não era minha, mas da minha mãe. Mas eu a chamava de minha porque todas as coisas que eram da minha mãe ela dizia que eram minhas também. Mas as minhas não eram dela. Os discos eu não emprestava para ela ouvir, apesar de nunca ter me pedido. O saxofone também não a deixaria tocar. Primeiro porque não sabia. E segundo porque era meu e eu não iria dividi-lo com ninguém. Nem mesmo com minha mãe. <br />
O fato é que o Charlie Parker me levou a treinar diariamente o saxofone. Eu tocava todas as músicas do disco. Do início ao fim. Os temas, improvisos e até os ruídos mais discretos que as chaves do saxofone faziam na gravação. A interpretação dele era algo divino. O Charlie Parker deve ter ido para o Paraíso. Talvez ele tenha podido estudar seu saxofone sem ter ninguém para atrapalhá-lo. Talvez ele tenha até comido todo o roseiral da avó, mas ele podia estudar o solo de “Donna Lee” e não ser perturbado pelo vizinho. E por isso ele não tenha querido matar ninguém. Talvez não.<br />
<br />
O Senhor Juliano Carreras morava no apartamento ao lado do meu. Após eu ter seguido a carreira de músico e ter começado a tocar na banda da cidade, passei a morar sozinho num apartamento e comecei a receber vários convites de músicos e cantoras famosas. Rosa Lucinha foi uma delas. Esteve pessoalmente no meu apartamento para me falar do seu desejo de me levar para tocar com ela. Rosa Lucinha era a cantora mais famosa da época e tinha todos aqueles seguranças quando me chamou lá da entrada. Subiu a escada do pequeno prédio em que eu morava, no terceiro andar. E todos os vizinhos admiravam em que ponto eu havia chegado ao ter visitas tão ilustres. Mas eu tive que recusar o convite de Rosa Lucinha, apesar de ter percebido que os seguranças dela não gostaram muito da minha decisão. <br />
O fato é que o Senhor Juliano Carreras não gostava de ser perturbado pelo som do meu saxofone. E eu precisava estudar mais do que nunca, já que agora era músico profissional e tocava na banda da minha cidade, além de ter sido convidado por Rosa Lucinha para acompanhá-la em sua turnê nacional e internacional. Eu recusei, pois queria fazer o teste para entrar na Orquestra dos Fuzileiros Navais. Esse era meu objetivo principal. Seria um músico militar, com todos aqueles uniformes e um chapéu exclusivo da Orquestra dos Fuzileiros Navais. As músicas que eles tocavam eram todas muito bonitas, mas quando eu entrasse iríamos tocar só as músicas do Charlie Parker. Inclusive as músicas do outro disco que eu havia visto na loja. Eu teria mais dinheiro e poderia comprar o outro disco do Charlie Parker e treinar todas elas. E toda a Orquestra dos Fuzileiros Navais iria executá-las.<br />
Mas para isso eu precisava estudar muito. Acordava às seis da manhã, tomava meu café e começava a estudar, música por música, solo por solo. Tocava o dia inteiro até escurecer, quando minha barriga me lembrava que eu precisava comer. Nos finais de semana ia tocar na banda da minha cidade para ter dinheiro para pagar meu aluguel, pois ninguém pode viver sem trabalhar. Minha mãe me ensinou isso muito bem e ainda por cima comprou o outro disco do Charlie Parker para me dar no Natal. Eu ouvi seiscentas e vinte e duas vezes sem parar e me apaixonei pelo disco. Naqueles dias eu não dormi, nem comi e nem fui tocar na banda da cidade. Só ouvi o disco por seiscentas e vinte e duas vezes. O Senhor Juliano Carreras provavelmente não gostava do Charlie Parker porque, depois disso, começou a me empestear a mente. Me disse para estudar meu saxofone na puta que pariu e ameaçou quebrar minha vitrola. Minha mãe, nessa época, já havia deixado de vez a vitrola comigo, pois não ouvia nada nela. A vitrola também já tinha sido do meu pai que, quando largou minha mãe e foi morar numa cidade bem distante com outra mulher, a deixou em casa. Acho que não gostava muito dela. Eu jamais deixaria uma vitrola e cinco discos tão bons quanto aqueles para ir morar tão distante assim. Ele poderia ter ficado conosco e assim eu o ensinaria a tocar saxofone e mostraria os principais segredos de Charlie Parker. Também o levaria para me assistir tocando na banda da cidade e tenho certeza que ele não iria se arrepender.<br />
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Eu passei a ter que ir para o Morro da Consolação estudar. Era um morro bem alto de onde dava para ver toda a cidade. Ele era chamado de Morro da Consolação porque há muito tempo atrás havia ali uma igreja que era da virgem da Consolação. Mas durante a revolução destruíram-na e atearam fogo nela e nas casas vizinhas. Desde então ninguém mais morou por lá e retiraram os escombros para que ninguém mais se lembrasse desse dia. Mas todo mundo se lembra porque até hoje o chamam de Morro da Consolação. E era lá que eu tocava meu saxofone. Parecia que eu havia desaprendido tudo. Estava bem destreinado e acho que quando tocava com o Charlie Parker eu ia bem melhor. Também ia bem quando tocava com a banda da cidade. Mas ali sentado, sozinho, parecia não conseguir me concentrar e não saía nada de bom. Só que eu precisava estudar. O teste para a Orquestra dos Fuzileiros Navais seria em breve e eu precisava estar preparado. E como eu não podia mais estudar em casa, pois havia enfurecido o Senhor Juliano Carreras, teria que estudar por ali mesmo. E assim foi durante treze dias. A cidade toda ouvia o som do saxofone, mas sem saber de onde vinha. Acredito que alguns achavam que seria uma dádiva de Deus para confortá-los pelo sentimento de perda da Igreja da Consolação. <br />
As músicas que eu tocava ainda estavam longe de serem aquelas que eu tocava quando estudava em casa. E agora eu ouvia muito baixo os discos em casa para não perturbar o Senhor Juliano Carreras. O problema é que ele chegava de madrugada, bêbado e com umas negas, que falavam alto e riam o tempo todo. Depois ficavam de gritarias e pulando em cima da cama, fazendo-a ranger tão alto que me tirava o sono. E eu precisava acordar cedo no outro dia para tomar meu café, pegar meu saxofone e subir o Morro da Consolação para estudar. Por várias vezes eu suportei aquela situação até que um dia de manhã bati em sua porta, depois de uma noite de baderna, e revelei para ele minha insatisfação com a situação, lembrando-o ainda que eu estava estudando no Morro da Consolação somente para não o incomodar mais. Na verdade ele nem me deixou chegar na metade do que eu queria dizer. Me mandou para a puta que pariu por acordá-lo tão cedo e disse que se eu voltasse a incomodá-lo, me daria uma porrada dentro da cara.<br />
Seu Juliano era bem grande, não muito forte, mas com braços e pernas compridas e ossudas. Já estava um pouco careca e tinha uma cara de bravo. Quando me ameaçou e fechou a porta na minha cara eu decidi não incomodá-lo mais. Uma porrada dentro da cara de um sujeito grande como ele deveria machucar pra cacete. Então achei por bem ir dormir no Morro da Consolação todas as vezes que ele fizesse suas farras. Fiquei um pouco assustado em saber que ele iria para o inferno. E ele com certeza iria, pois uma pessoa que dá uma porrada dentro da cara da outra não teria outro fim. Minha mãe já havia me dito que só de pensar certos pecados você já os havia cometido. Passei a ter muito medo dele depois que esses pensamentos me visitaram. Eu havia conhecido uma pessoa que iria para o inferno e que conheceria o demônio. <br />
Não gosto muito de pensar essas coisas porque me deixam confuso e nervoso. Porém refletindo um pouco mais, descobri que meu próprio pai iria para lá também. O padre já havia dito na missa que o adultério é pecado. E quando meu pai fugiu com outra mulher para uma cidade muito distante, ele cometeu adultério. E ele está mais perto do inferno do que o Senhor Juliano Carreras. Ainda largou uma vitrola, cinco discos e sua família para trás.<br />
<br />
O fato é que numa certa tarde de estudos no Morro da Consolação o tempo fechou rápido e, antes que eu me desse conta, caiu um aguaceiro tão pesado que eu nunca tinha visto igual. Como eu não tinha a mala para guardar o meu saxofone, tentei escondê-lo debaixo da minha camisa. Mas ela já estava toda ensopada e vi escorrer água por dentro dele e por todas as suas chaves. Então corri o mais depressa que pude. Passei por debaixo da cerca de arame farpado e peguei a pequena trilha que levava de volta à cidade. A trilha estava muito molhada e escorregadia e, na primeira descida, eu caí e meu saxofone caiu embaixo de mim deslizando pelo barranco. A chuva não dava trégua e nem se podia ver a cidade de tão branca que estava a vista. Era muita água e meu saxofone agora havia caído numa grande poça de lama. Tive que descer pelo barranco segurando pelas moitas de capim até ter altura suficiente para saltar. Consegui resgatá-lo e cobri-lo novamente com minha camisa. Ao chegar em casa notei que haviam quebrado quatro chaves do saxofone e que eu deveria voltar para achar os pedaços. Fiquei até escurecer sob aquela chuva, procurando no barranco do Morro da Consolação pelas quatro chaves do saxofone, mas não encontrei nada. Voltei por mais nove dias seguidos e passei os nove dias inteiros procurando pelas quatro chaves que haviam quebrado. Por fim, descobri que não haveria jeito de encontrá-las e descobri qual seria a solução: eu tinha que matar o Senhor Juliano Carreras.<br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-91221392451110877582010-01-09T09:01:00.000-08:002010-01-09T09:01:00.331-08:00AMANCIO PENSADOR<br />
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<div class="MsoNormal"> <i> Raphael Montechiari</i><br />
<br />
- Oi Amâncio. Como vai? Quem bom que veio!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olá, Sebastião Conselheiro. Realmente foi uma tristeza e o mínimo que podemos fazer é vir aqui compartilhar nossa dor com a família.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É. Uma tristeza mesmo! Amâncio. Pode ficar à vontade. Pegue umas torradas e um chazinho ali. Vou aqui falar com Dona Renilda Teixeira.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Não se preocupe comigo, Sebastião Conselheiro. Daqui a pouco me sirvo.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Fique à vontade.<br />
</div><div class="MsoNormal"> É muito feio ficar fingindo, Sebastião Conselheiro. Você queria o velho morto há muito tempo e agora fica fazendo cena aí.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olá Senhora Glorinha. Meus sentimentos.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi Amâncio. Obrigada.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Essa aí é a única que realmente gostava do velho. E cuidou dele até o último momento. Deu banho, deu remédio e deu amor a ele durante a vida toda. Mas a coitadinha nem sabe que...<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Amââââncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olá Seu Cláudio Dumas.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Não. Não soube.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Pois é, Amâncio. Eu estava fazendo uma visita à tia Glorinha e fui vê-lo. Ele estava meio acordado e parecia lúcido. Me disse algumas coisas sobre literatura, que não entendi muito bem. Depois me perguntou sobre minha mãe e eu o lembrei que ela já havia partido.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Nossa. Ele nem se lembrava? Coitadinho.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Nem lembrava. Mas já estava nas últimas, né? Depois te conto mais. A Lisandra chegou.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Esse fede demais. Ô homenzinho pra ter cheiro de inhaca! Olha lá. “ Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?” Deve ter falado isso pra todo mundo. Que marola! Eu já tava ficando sem ar. Ainda mais de paletó. O velho deve ter morrido de falta de ar! Vou encostar num canto que daqui a pouco passam uns canapés.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olá, Dona Esmeralda. Como vai?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Tudo bem, meu filho.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Tudo indo, né Dona Esmeralda?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É meu filho. Mas a vida é assim mesmo. A única coisa que não falha é a morte. Chega pra todo mundo.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É verdade.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Vou ter que esperar mais um pouquinho pra me despedir do velho. Ele era boa gente! Não gosto de ficar me lembrando dele, mas preciso arrumar um jeito de ficar mais triste e até de chorar, se possível. Ele merece algumas lágrimas.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Judite Gouveia! Como é que você tá?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - E a sua filhinha. Está lindinha.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É. Já está uma mocinha. Fala oi com o Tio Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi tio Amâncio. Fiz “isso”de anos.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Que bonitinha! Quatro aninhos?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É, né filhinha? Amâncio, você viu a cara-de-pau da Lurdinha Nassar, sentada ali na entrada?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - O quê? Não tinha reparado, menina. Mas é mesmo uma cara-de-pau!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Dá vontade de ir lá e baixar o barraco com ela. Mas o velho não merece.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - E ela tá chorando o quê? Roubou tudo que o velho tinha e agora tá aí. Deve estar com medo de assombração.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Nem me fale, Amâncio! Essa noite eu tive um sonho terrível! Sonhei que o velho estava num bote, com a Julinha nas costas, como ele costumava fazer. Aí caíram os dois do bote. Quando acordei vi um monte de água no chão. Acho que ele voltou pra brincar com a minha menina.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Que isso, Judite! Onde já se viu morto voltar?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Quê? Já ouvi vários relatos. E a água? De onde veio?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Tira essas coisas da cabeça, mulher! É que você estava impressionada.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Impressionada....<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vou ao banheiro.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Desconjuro! E eu lá vou saber se não foi ele mesmo que quis dar um passeio com a menina e molhou a casa toda? Desconjuro credo!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Com licença, querida! Licencinha, garotinho. Olá Dona Ruth. Meus sentimentos.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Obrigado, Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Com licença, jovens.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Quanta gente! Nessa cidade morta, funeral é evento que não se falta. E que banheiro mal cuidado! Espelho quebrado. Gente porca! A fechadura tá agarrando. Fecha, maldita! Ai, caralho! Quase prendi o dedo nesta porra! Aaaaaaaaaa!! Como é bom mijar! Aaaaaaaaiii! Que alívio! Já tem gente forçando a porta. Aquela cara-de-pau teve a coragem de vir. Que coragem! Vai dar confusão no enterro do velho. Acho que vou avisar pra ela sumir daqui, antes que dê merda! <br />
</div><div class="MsoNormal"> - Já vou! Não tem educação não? Que coisa!<br />
</div><div class="MsoNormal"> Torneira que não fecha direito! Vai ficar escorrendo água. O que é que eu posso fazer?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Calma. Não tá vendo que tem gente?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É que eu tô apertada!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Sua mão devia te ensinar que tem que esperar sua vez. Quem tá lá dentro tá apertado também!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Desculpe. Me deixa entrar logo!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Essas crianças...<br />
</div><div class="MsoNormal"> Não têm um pingo de educação. Igual à mãe. Tomara que não vire uma piranha, como ela. Dá pra qualquer um. Olha ela lá. Mas é gostosa a filha da puta, né? Se insinuando pro Devair Toledo. Deve estar comendo ela direto! Gracinha Nunes. Até o nome é de puta!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Bom dia, Dona Cleuza.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Bom dia, Amancio. Que tristeza, né?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É sim, dona Cleuza. Mas Deus sabe o que faz.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É. Já era hora dele, né?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Era sim, dona Cleuza.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - E o seu mais velho? Não veio?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Veio não. Ficou com a mãe em casa. Ela não gosta muito de enterros.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ah, sei. Ninguém gosta, né? Mas quem somos nós pra contestar os desígnios de Deus, né meu filho?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É sim, dona Cleuza. E o padre, ainda não chegou?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Já sim. Está comendo umas torradinhas com chá.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ótima idéia. Vou ver se como alguma coisa também.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Come sim, Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Olha lá a safada da Gracinha. Até se esqueceu que está no funeral do tio. Mostrando os peitos pra quem quiser ver. E tá doida pra dar hoje. Só que escolheu o mais lerdo. Se ela tivesse conseguido ficar vinte minutos sozinha eu já teria chegado nela e aí ela ia ver. Mas não consegue ficar um minuto sem dar.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - O que foi, Judite? Chora não!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Estou lembrando do velho. Ele me levava pra passear no parque e sempre comprava presentes pra todos nós.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É mesmo. Se lembra do dia da ventania?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Claro. Ele estava com...<br />
</div><div class="MsoNormal"> Como eu vou fazer pra sair com ela daqui sem que ninguém perceba? Primeiro tenho que tirar o Devair Toledo dali senão, daqui a pouco, mesmo ele sendo lerdo, ela vai pegar ele pelo pescoço e arrastá-lo para um quarto desses. <br />
</div><div class="MsoNormal"> - ... e o chapéu de todo mundo voando.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É mesmo. Agora, olha a demônia levantando pra ir vê-lo. Acho que se ele estivesse vivo daria na cara dela.<br />
</div><div class="MsoNormal"> A filha da Gracinha está de novo na fila do banheiro. Acho que já tenho um plano.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ah Judite! Se eu fosse mais ligado ao velho daria um soco na cara dela. Acho que todo mundo que está aqui e gostava dele iria aplaudir.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Até ele vai aplaudir, Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vai mesmo!<br />
</div><div class="MsoNormal"> Vou fazer a Judite arrumar uma confusão com essa velha. Tranco a filha da gostosa no banheiro e deixo ela chorar um pouco. Então, durante a confusão Devair vai sair pra separar a briga da irmã e...<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olá Clarinda. Meus Sentimentos.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Que Deus o tenha, né Amâncio?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É sim, Clarinda.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Então eu chego com a filha dela no colo e falo que está querendo ir embora, pois ficou presa no banheiro. Aí...<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Você acha que quem morre pode voltar, Amâncio?<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Claro que não, Judite. Isso é coisa da sua imaginação!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Eu acho que vi o dedo do velho mexendo.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Foi não, mulher. Ele está mortinho da silva e só vai voltar nos nossos sonhos.<br />
</div><div class="MsoNormal"> -Sei lá, Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Temos que cuidar dos vivos. Principalmente aqueles que fizeram mal para quem a gente amava.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Olha como é cara-de-pau. Passou a mão na cabeça da tia Glorinha. Agora vou lá quebrar a cara dela.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vai sim, Judite. Quebra ela!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ei, sua vagabunda! Quem você acha que....<br />
</div><div class="MsoNormal"> Essa aí é brava. Tenho que ser rápido. É só empurrar um pouco a porta assim, que a fechadura emperra.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ai meu Deus! Que brigalhada. Olha lá, Amâncio. Estão rolando no chão.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - É sim, dona Cleuza.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Tem alguém preso no banheiro, Amâncio. Deve ser criança, porque tá chorando.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ai meu Deus!Deixa que eu ajudo.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Como eu havia previsto. O Devair já está lá puxando a irmã e a safada tá procurando a filha.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Pronto, menina! Não precisa chorar.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Eu quero a minha mãe.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Vamos que eu levo você.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Lá vem ela. Muito boa!<br />
</div><div class="MsoNormal"> - O que aconteceu filhinha? Oi Amâncio.<br />
</div><div class="MsoNormal"> Oi gostosa.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Oi Gracinha. Ela ficou presa no banheiro. Foi só isso.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Ai Amâncio, muito obrigada. Nem sei o que posso fazer pra retribuir seu favor.<br />
</div><div class="MsoNormal"> - Eu sei.<br />
</div><div class="MsoNormal"> <br />
</div><br />
Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6014543466842221376.post-63751030649188120762010-01-05T12:28:00.000-08:002010-01-05T14:16:21.878-08:00EM BRANCO E PRETO<i> Raphael Montechiari</i><br />
<br />
- Sim. Aqui estou eu, doutor. Voltei depois de vários anos sem precisar pisar num oftalmologista.<br />
- Mas não é o mesmo problema daquela época, é? Você era bem garoto quando veio aqui. Sua mãe te trouxe. Me lembro dela. Como é que ela tá?<br />
- É. Ela tá bem. Em casa, fazendo o almoço pra mim e pro pai. Sabe que o pai, mesmo podendo se aposentar continua trabalhando?<br />
- Ih. É assim mesmo. Eu também já poderia ter me aposentado. Mas não quero me sentir inútil não, sabe? E também, que saber? Não consigo me imaginar sentado o dia inteiro jogando cartas numa praça ou andando atrás de promoções nos supermercados.<br />
- É. Mas acho que ele poderia pelo menos pegar mais leve. Na idade que ele tá não pode ficar exagerando!<br />
- Isso é verdade. Mas me conte, rapaz? O que o traz aqui depois de tanto tempo?<br />
- Então, doutor. Estou há uma semana com um problema que nunca ouvi falar que ninguém tenha tido antes. Talvez o senhor, que trabalhe com isso, já tenha visto.<br />
- Já vi tantas coisas que você nem pode imaginar, filho. Sente alguma dor na vista?<br />
- Não. Nada de dor.<br />
- Então vem cá. Antes de me dizer qualquer coisa, vou fazer uma análise geral da sua vista. Às vezes posso até adivinhar antes mesmo de você me dizer. Há tanto tempo trabalhando com isso nada mais é novo aqui. Senta aqui. Isso. Olha para essa luz amarela e fique com os olhos bem abertos.<br />
- Olhar para essa luz aqui, né?<br />
- Claro. Por acaso está vendo outra luz amarela?<br />
- Nem outra luz verde. Só tem uma luz aqui.<br />
- Tem razão. Olhe pra luz.<br />
- Certo.<br />
- Hum. Tudo normal. Nada que possa, à primeira vista, parecer de errado. Vem. Levanta com cuidado pra não bater a cabeça na lâmpada. Isso. Senta aqui e me diga as letras que vou te indicando.<br />
- A, F, S, K, M, D e G<br />
-Ótimo. Na linha de baixo.<br />
- U, F, R, T, Q, A e P.<br />
- Perfeito. Agora essa aqui é a última. Vamos lá. Me diz as letras.<br />
- G, F, E, R, W, G e X.<br />
- Tudo certo! É. Não tem nada de errado a princípio. Me rendo! Pode então me dizer o que está ocorrendo.<br />
- Doutor, há uma semana, eu comecei a ver algumas coisas como se estivessem desbotadas. Por exemplo: as árvores não estavam com o verde tão verde e o céu estava ficando mais acinzentado, mesmo com o tempo limpo e com sol. Inclusive o sol foi ficando mais branco. Durante toda a semana foi tudo ficando assim, desbotado. E foi ficando cada vez mais até chegar a quinta-feira e estar tudo assim, como tá hoje.<br />
- Assim como?<br />
- Tudo em preto-e-branco. Não vejo cor nenhuma. É como se estivesse vendo tudo numa televisão antiga, entende?<br />
- Aham. Isso é, claramente, um daltonismo. Você está cego para as cores. Geralmente isso ocorre só com o vermelho ou só com o verde, fazendo você confundir as cores pela falta das outras. Mas o seu caso é mais grave. E eu ainda não tinha visto desse jeito. Você tá cego pra quase todas as cores.<br />
- E isso tem cura?<br />
- Creio que não, meu jovem.<br />
<br />
Saí do consultório um pouco triste, um pouco perturbado. Estava tudo tão sem graça! Me lembro da semana passada, quando eu via tudo colorido. Os olhos verdes da Beatriz Lourenço e seus cabelos amarelos. Uma blusa branca e uma calça jeans azul clara. Na minha mente, tudo ainda é colorido. Pena que meus olhos me escondem as cores. Voltei para casa e fiquei dois dias de olhos fechados. Não queria mais comer. Uma banana cinza, um alface branco e um bife preto. O tomate parecia estragado e a maçã era horrível. Nada tinha graça. Não iria mais para a praia ver um mar feio, com gentes branquelas ou totalmente pretas. O bronzeado da pele da beatriz Lourenço só estaria nas minhas lembranças. E suas roupas todas seriam sem nenhuma graça. Fiquei dois dias em casa e liguei para ela. Ouvi-la era tão bom que acho que não queria ver a dona daquela voz em preto e branco. Acho que perderia o encanto.<br />
<br />
- E como você está amor?<br />
- Estou mal.<br />
- O quê? O quê que aconteceu?<br />
- Nada do que vejo tem mais graça. Tá tudo preto e branco. Você nem imagina que tristeza que é. Perdi a fome e nem tenho saído de casa.<br />
- Mais você tem que procurar um médico.<br />
- Já fui. Ele me disse que eu sou um daltônico como ele nunca tinha visto antes.<br />
- Meu Deus! Mas não te passou nenhum remédio?<br />
- Ele disse que não tem cura.<br />
- Então você não vê cor nenhuma?<br />
- Vejo. Só o preto e o branco.<br />
- Mas desde quando você tá assim?<br />
- Desde a semana passada.<br />
- E por que não me ligou antes?<br />
- Porque eu queria te ligar já dando boas notícias. Mas como elas não iam vir mais resolvi te ligar pra contar.<br />
- Quando você vem?<br />
- No próximo final de semana.<br />
- E o seu trabalho?<br />
- Acho que tá tranqüilo. Dá pra identificar as moedas e notas pelos números. Só que quando descobrirem o que aconteceu comigo devo ser trocado de cargo. As cores ajudam muito na distinção das notas e isso pode me atrapalhar um pouco, lá no banco. Sei lá.<br />
- Ai, meu Deus. Coitadinho. Mas vai dar tudo certo.<br />
- Eu queria muito te ver. Depois que te conheci passei a contar cada segundo sem você para chegar mais rápido nosso encontro.<br />
- Eu também. Mas já tá chegando.<br />
<br />
Apesar de faltarem cinco dias para eu a vê-la novamente pareciam cinco anos. E a vida, que já estava sem graça, agora estava sem cores. Fui ao trabalho durante toda a semana sem falar nada a ninguém. Algumas confusões, mas nada de grave que alguém pudesse notar. Durante o trabalho eu olhava para o relógio de dez em dez segundos e ele parecia não andar. Às vezes acho que voltava pra trás. Ficava ali, contando o dinheiro uma, duas, três vezes e olhava para ele. Preto. Branco. Com ponteiros pretos. Antes eram vermelhos. Quase parados. Eu achava que os segundos eram rápidos, há um tempo. “Preparo o relatório em um segundo!” Era o que me diziam, quando queriam dizer que seria rápido. E eu sempre disse isso. Mas o segundo é muito lento quando se está esperando. E eu posso jurar que, desde que eu parei de contar a terceira vez aquele bolo de notas o segundo não passou. Estava ali, quase chegando ao outro traço do relógio. Eu via que estava andando, mas não chegava jamais. E quando chegou percebi que tinha outra distância astronômica até o outro. E isso precisaria acontecer sessenta vezes para completar o minuto. E sessenta vezes sessenta para completar a hora. E isso tudo vezes vinte e quatro. E ainda faltavam cinco dias para eu encontrá-la! O tempo não é o mesmo! Não pode ser o mesmo! Quando estou com a Beatriz Lourenço eu não consigo sequer ver o ponteiro passar pelos segundos. Acho que ele anda de minuto em minuto. Talvez de hora em hora. Mas agora eu posso jurar que está ainda indo para o terceiro segundo, desde que eu parei de contar aquela terceira vez o bolo de notas. E tenho certeza que o relógio está funcionando bem. A estagiária traz o pacote de notas de um em um minuto. E ela não chega!<br />
<br />
- Já tá na hora do almoço?<br />
- Quem dera. Acabamos de chegar, moço.<br />
- Não é possível!<br />
<br />
O tempo não passava. E o mundo ao meu redor estava em preto e branco. Achei que eu iria enlouquecer. Até que dei mais uma olhada no relógio e, graças a Deus, tinha chegado ao quinto segundo. Bastava eu esperar mais cinqüenta e cinco para completar um minuto e aí só faltariam cinqüenta e nove para ter passado a primeira hora. Fiquei todo o expediente tentando descobrir o que poderia ter acontecido com meus olhos. O tempo, acreditem, passou e deu minha hora de sair.<br />
Do trabalho fui direto para casa, fechar os olhos e sonhar colorido. Minha mãe estava muito preocupada e a ouvi ao telefone contando para nossa tia a situação. Tia Carmem sempre tinha solução pra tudo e ensinou como fazer um remédio para a vista. Mas não deu certo. Depois mandou uma simpatia, que também não deu certo. E nem rezas aos santos mais fortes me curaram daquele mal.<br />
<br />
No dia seguinte acordei com o barulho irritante do despertador. Liguei o rádio, como de costume e fui me barbear. Ouvi algumas notícias sobre o trânsito e quando o locutor anunciou “Liberdade”, a famosa música do Castro Alencar, ouvi somente ruídos. Fui até o rádio para sintonizar e nada. Mudei de estação e os ruídos lá estavam. Desesperado, cheguei até a minha mãe, que ouvia também sua rádio e perguntei:<br />
<br />
- Mãe. Deu algum problema nas rádios? Que barulheira estranha! Isso não incomoda a senhora?<br />
- Que barulheira o que, menino! Barulheira é aquilo que você ouve. Aquele rock pesado. Isso é Castro Alencar!<br />
- Isso?<br />
- É. Música de qualidade!<br />
- Mas eu só estou ouvindo ruídos.<br />
- Como assim?<br />
- Como se estivesse fora do ar.<br />
- Ai, meu Deus. E sua vista? Continua em preto e branco?<br />
- Sim.<br />
- Minha Nossa Senhora! O que tá acontecendo, menino?<br />
<br />
E realmente eu não podia mais ouvir música. Passava e via pessoas cantando. Mas só via. Da boca delas saía ruídos, como de ratos guinchando ou de bois mugindo. E eu olhava espantado para as pessoas que sorriam para mim. E os passarinhos faziam um barulho que também me irritava. O que teria acontecido comigo?<br />
De volta ao banco. De volta à batalha contra o relógio. Lá estava ele. Preto e branco. Segundo por segundo, se arrastando. E agora, quando soava a música do relógio, avisando a hora certa, era um sofrimento. Um barulho ensurdecedor e que me incomodava absurdamente. Uma senhora, na fila me viu tapando os ouvidos e a vi sorrindo. Sua gengiva cinza, seu cabelo cinza claro e sua cara branca. Roupa preta e tudo mais que a cercava era preto e branco. Fui ao banheiro. Lá estava alguém escovando os dentes e fazendo ruídos com a boca. Desisti e voltei para a contagem de notas. Ainda bem que não trabalho num lugar que tenha música ambiente. Estou desgraçado! A única coisa que me resta na vida é a minha Beatriz Lourenço. Com ela, mesmo em preto e branco e até sem música tudo vai ser melhor.<br />
No dia seguinte, o ruído estava mais baixo, pois minha mãe, sabendo como eu estava, colocou o rádio bem baixinho para não me atrapalhar. O café estava sem doce e reclamei com ela.<br />
<br />
- Mãe. Esqueceu de colocar doce no café?<br />
- Não acredito. Claro que coloquei. Acabei de tomar. Perdeu o paladar também?<br />
- Não. Sinto o sabor amargo do café. Mas não sinto o doce. E nem o salgado do queijo.<br />
- Santa Maria, mãe de Deus. Rogai por nós pecadores.<br />
Resumindo. Sem cores, sem música, sem doce nem salgado. O que mais poderia me acontecer? Cheiro, tato?<br />
<br />
O tempo, enfim passou, e chegou a hora de viajar. Não que tenha sido rápido, mas passou. Torturantes cinco dias. Logo de manhã acordei, me levantei e tentei não prestar atenção em mais nada que tivesse parado de funcionar no meu corpo. Peguei minhas coisas e fui direto para a ferroviária. Assim que o trem chegou, entrei e tive que agüentar todos os ruídos que saíam das caixas de som da estação. Adorei quando pararam as músicas e deram os avisos de partidas de trens. Nem reparei nas moças que passavam por mim, com roupas em preto e branco. Pareciam todas uniformizadas. Entrei e procurei um jeito de dormir. A única coisa que me deixava feliz era estar com Beatriz Lourenço. Dormi. Sonhei com um parque cheio de árvores em preto e branco. Então Beatriz vinha com um pincel e coloria tudo. As árvores ficavam lindas com suas folhas verdes e o tronco marrom. O lago bem azulzinho, e um cisne branco nadava nele. Com o bico laranja. Meninas brincavam, com vestidinhos rosas e o céu era de um azul sem fim. Beatriz surgia de novo, com um violino, tocando lindas melodias e as meninas cantavam e dançavam. Depois jogavam balas e chocolates. Deliciosos. Doces.<br />
<br />
Assim que acordei com o apito do trem notei que havia chegado e a música “Liberdade”, de Castro Alencar soava nos alto-falantes da estação. Abri os olhos e pude ver que tudo estava colorido. Mais até que o normal. Limpei meus olhos e a vi. Linda. Loira, de olhos verdes, pele rosada e camisa branca com listras azuis. Sua saia era azul, combinando com as listras e ela trazia uma caixa de bombons. Eu a abracei, como se estivesse passado anos longe dela e dei o melhor beijo de toda minha vida. Então contei que estava tudo normal e contei o que havia me acontecido durante a semana. Eu olhava para cada canto e apreciava cada cor como eu nunca havia apreciado antes. Fomos para casa comendo bombons doces e almoçamos delícias salgadas, com seus pais coloridos e com músicas lindas ao fundo. E desde então nunca mais fiquei longe dela.Raphael Montechiarihttp://www.blogger.com/profile/02235652632533261381noreply@blogger.com0