sábado, 27 de fevereiro de 2010

DESCONVERSAS


Raphael Montechiari

            - Eu fico sempre te ouvindo o dia inteiro e você nem liga pra mim. Já cansei de ficar escutando essas baboseiras que você fala o dia inteiro. É só eu te ligar e você começa a falar.

            - ...

            - Ahh...então quer dizer que vai ficar desconversando? Falando baboseiras. Olha só. Uma coisa eu te digo. Não vou te ligar mais. Só assim vou ter paz. Fica você inventando mil desculpas pra tentar explicar os problemas de sua vidinha medíocre e sou eu sempre que fico ouvindo. Você nunca pára pra escutar. Quero ver o dia que você ficar sozinha. Ah! Aí eu quero ver. Ninguém pra te ouvir. Aí vai dar valor ao bobo aqui. E tem mais. Já está ficando velha e ninguém mais dá valor a quem está velha não. Daqui a pouco sou eu quem vai te largar. E pegar uma novinha pra ficar fazendo todas as minhas vontades. Não toma jeito não pra você ver!E vou desligar agora porque vou para o quarto dormir. Não quero mais nada com você.

            (Bate a porta do quarto)

            No dia seguinte:

            - Oi amor. Estou te ligando pra  pedir desculpas por ontem. Eu estava muito aborrecido com as coisas que você foi me contando e no final botei a culpa toda em você. Achei que estava inventando tudo só pra me deixar triste. Mas a culpa não é sua. A culpa é daquele homem que sempre passa aqui embaixo gritando pra vender aquelas caixas de mamão. Ele me deixa nervoso e desconto em você. Mil desculpas. Nunca achei que eu fosse ficar tão transtornado. Depois vem você me contar esse monte de tragédias que vêm acontecendo. E o grito do cara vendendo mamão papaia ao mesmo tempo. Isso vai me deixando nervoso! A campainha do andar de baixo tocou ontem umas oito vezes. Soube que tem um cobrador que vem atrás do vizinho aqui de baixo. E ele finge que não está em casa pra não pagar. Mas sei que ele está. Porque eu ouço a descarga do banheiro dele e quando liga o chuveiro. E ontem, um pouco antes do cobrador chegar, ele deu uma descarga e tomou banho em seguida. Depois foi uma série de dedadas na campainha e nada. Isso tudo vai me deixando nervoso.

            A vizinha da frente está com algum problema também. Ela coloca sempre papéis no vidro da janela, como se estivesse querendo esconder alguma coisa. Depois rasga tudo e troca. Põe papéis mais escuros e de novo rasga tudo e troca. Põe papéis ainda mais escuros. E fica trocando até escurecer. Depois acende as luzes. E já está sem nenhum papel. Isso me deixa preocupado. Com todas essas coisas que você tem me contado que tem acontecido no mundo, fico preocupado mesmo. Quem sabe ela não mata pessoas e esconde os corpos? Durante o dia ela vai destrinchando os corpos e guardando na geladeira. À tardinha ela manda tudo pro lixo e depois, quando escurece, já está tudo escondido. Ela tem mesmo cara de assassina. Preciso desligar. Ela está olhando pra cá agora e pode estar querendo alguma coisa comigo.

            (Bate a porta do quarto)

            Vinte e sete minutos depois.

            - Oi. Acho que já podemos ficar de bem. Estava no quarto relembrando os bons momentos que vivemos. E o quanto eu aprendi com você. Além do que você é muito divertida e quando te ligo é minha única companhia. O que? Nós não podemos continuar juntos? Novelas! Sempre o mesmo assunto! Não fale mais isso comigo. Sabe que fico magoado. Olhe dentro dos meus olhos. Só vai ver lágrimas. Eu sei que às vezes sou rude. Mas já te contei sobre o cara que vende mamão papaia, né? Ele me deixa tenso. E a pia que não para de escorrer água. Amarrei ontem mesmo um trapo nela pra segurar. Mas quando abri hoje, para lavar minhas mãos, não consegui recolocar e tenho certeza que nunca mais conseguirei. Vou ter que viver com essa água escorrendo noite e dia, dia e noite, noite e dia. Você tem alguma idéia do que eu posso fazer? O que? Você parece que nem está me ouvindo. O que tem a ver o novo filme que vai passar hoje com isso? Tem alguma torneira vazando no filme e irão me ensinar a consertá-la? Aposto que não. Então não fale bobeiras. Já está tocando a campainha do vizinho de baixo. Vou desligar pra ouvir o que está acontecendo. Depois te ligo de novo e conto.

            (Bate a porta do quarto)

            Uma hora e meia depois.

            - Fale baixinho que o cobrador ainda está lá embaixo. Vou abaixar o volume. Deu uma merda do cacete. Acho que ele foi com polícia e tudo. Arrombaram a porta e pegaram o vizinho. Parece que deram uma surra nele e quebraram muita coisa por lá. Esses cobradores são muito violentos! Eles chamam a polícia e pagam a eles pra cobrar os maus pagadores. Estou até preocupado com a conta, de tanto que eu te ligo. O dia inteiro. Todo dia. Acho que vou até ficar devendo e os cobradores trarão a polícia e quebrarão minhas pernas. Acho melhor até parar de te ligar. Daqui a pouco começarão a tocar a campainha aqui e eu não vou atender. Porque eles são muito violentos. Acho até que irão arrombar depois e me bater. Mas o quanto eu puder fingir que não estou aqui vou fingir. A conta virá tão alta que não poderei pagar. É. Preciso ficar calmo. Jamais vou parar de te ligar. Sabe que é minha única companhia, né? E de que adianta eu ter pernas sãs se é a sua companhia que me faz bem? E se você estiver me falando coisas tristes é só eu mudar de canal que tudo se resolve. Boto num filme de amor e só vou ouvir coisas belas. Mas hoje vou ficar aqui, só te ouvindo, o dia inteiro. Tenho falado demais...

sábado, 20 de fevereiro de 2010

EU EXISTO

Raphael Montechiari

E lá vou eu. Quem sabe pra onde? Quem sabe quando? Tenho a mesma dúvida de todas as pessoas no mundo. Não tenho a mínima idéia pra onde eu vou quando ele morrer. Fui criado pela sua mente e vou, sabe Deus para onde, quando ele se for.

Vou me apresentar:

Sou o Inácio Antão, amigo imaginário de Carlos Pontes, dono da Hospedaria Central. Ele me tem como amigo desde que surtou, na última páscoa. Tenho estado com ele, conversado e feito companhia durante todo esse tempo a esse grande miserável. Passei bons momentos com ele e outros não tão bons assim.
Geralmente apareço para aconselhá-lo e preciso repetir várias vezes o conselho para que ele o faça. Ninguém mais me vê ou me ouve. Só ele. Mas eu existo. Se estou aqui te falando tudo isso é porque existo. Como disse o outro: Penso, logo existo. E eu não só penso por mim, mas até pelo Carlos Pontes. Tanto que dou conselhos para ele.

Está certo que não tenho dado bons conselhos para ele, de acordo com a ética e moral da sociedade em que ele vive. Mas fui criado pela parte reprimida do cérebro de Carlos Pontes. Reprimida por essa mesma ética e moral da sociedade, criada para se ter uma suposta ordem. Mas tudo que falo e faço são coisas que a natureza humana quer fazer mas não pode, por causas das regras e leis criadas. Então não tenho culpa. Falo o que ele quer ouvir. Faço o que ele quer que eu faça.

O último conselho que dei foi pra ele assaltar a casa do senhor Elivelton Moreira, o magnata da cidade. Carlos estava com problemas financeiros e há muito tempo seu salário não dava para nada. E eu sabia que ele achava essa vida uma injustiça. Eu ensinei ao Carlos Pontes a fazer bombas caseiras, a usar bem uma faca para cortar sob os braços, na altura onde passa uma artéria importante. Ensinei também como não deixar pistas de um crime e como apagá-las. Mostrei pra ele alguns exemplos de pessoas que corrompem as leis e continuam numa boa. O próprio senhor Elivelton Moreira ficou rico desse jeito corrompendo várias delas. Falei da necessidade de irmos contra tudo e todos para seguir nosso instinto natural. Expliquei que primeiro temos que estar felizes conosco e depois transmitiremos essa felicidade a outros. Mas para alcançarmos essa felicidade é extremamente necessário sermos nós mesmos. Fazer aquilo que queremos. E o que ele mais queria naquele momento era ficar rico e poder se livrar do seu trabalho medíocre. Só precisei alertá-lo desse desejo oculto e reprimido. E lembrei para ele durante todos os dias da minha vida. Falava, falava e falava. Fiz até uma rima que eu repetia constantemente no seu ouvido: “Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira. Largue de bobeira e assalte o seu Moreira.”. Imagine isso no ouvido durante vários e vários dias? Então eu o convenci.

Compramos uma espingarda calibre doze, luvas e uma touca preta. Era preciso muita cautela para não ser identificado ao entrar na casa e as impressões não poderiam ser deixadas por onde passássemos. Coisas básicas que se aprende em qualquer filme. Entreguei o plano prontinho, só para ele executar. Não tinha falhas. Era perfeito. Mas o maldito covarde, no último momento, fraquejou e foi baleado pelos capangas do senhor Elivelton Moreira. E agora ele estava entre a vida e a morte. Na verdade, estava somente aguardando a morte.

O senhor Moreira, muito influente, e sem nenhum receio de ferir a ética e a moral, já havia mandado um dos seus para o hospital terminar o serviço inacabado. E é ele quem acaba de entrar no quarto, sem disfarce nem nada. Vai nos matar.

- Acorda, Carlos – gritei para ele desesperado.

Balancei sua cama e bati na sua cara. O capanga já tirava o frasco com o veneno do bolso, puxava todo ele para uma seringa e aplicava no tubo de soro. Eu nada podia fazer para evitar.

- Acorde, Carlos – gritei já mais fraco.

Agora o veneno já entrava em suas veias e eu podia senti-lo me queimando por dentro.

- Acorde, miserável – sussurrei, já sem forças.

- Acorde....

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A SENHORA DE CABELO LARANJA

Raphael Montechiari

-Olá Catarina. É você a Catarina, certo?
- Sim. Sou eu. E você?
- Vim recomendada por uma conhecida sua.
- Conhecida?
- É. Ela esteve junto de você durante os últimos anos.
- Ah. Aquela senhora de cabelo laranja?
- Isso.
- Sim. Ela está sumida mesmo. Passava a maior parte do tempo comigo. Quando eu ia lavar roupa no rio ela ficava me olhando. Não me ajudava. Só ficava ali me olhando. Às vezes chegava perto e apertava o meu coração. E depois soprava minha barriga. Era um dor muito forte que eu sentia no coração. O frio na barriga, com seu sopro, também me incomodava bastante. Mas o aperto no coração era o pior. Eu olhava para o céu, pedindo a Deus que me desse força. Ficava assim olhando para o céu até ela parar. Depois ela ficava por ali. Me olhando.
- E mais o que?
- Mais um monte de coisas.
- Como?
- Mais um monte de coisas. Ela me mostrava umas imagens. Meu namorado e eu, na porta da capela, abraçados. Isso foi no primeiro dia que ficamos juntos. E mais outras imagens de momentos bons. Só de momentos bons. No início ela vinha duas, três vezes por semana. Depois passou a morar lá em casa. Ela fazia a cama ao lado da minha. Um colchão velho mas com lençóis bem branquinhos. Travesseiro alto. E ficava ali me mostrando imagens e lembrando histórias. E vinha apertar meu coração. Mas quando eu ia encontrar o meu namorado, ela sumia. Ela nunca se encontrou com ele. Nem sei como conseguiu tantas imagens nossas assim. Logo que eu tomava o trem para voltar já notava sua presença ao meu lado. Apertava tanto o meu coração que eu até chorava, enquanto via meu namorado acenando.
- Então! Eu vim a pedido dela.
- Eu não gostava muito dela. Você a conhece bem?
- Sim. Fazemos vários trabalhos juntas.
- Ela sempre foi muito discreta e sempre presente ali ao meu lado. Às vezes eu até a esquecia. Mas quando desocupava a mente eu percebia que ela estava ali e, ao me virar para trás, lá estava ela me olhando. Era só eu a descobrir que ela vinha com aquela mão ossuda e enrugada para apertar meu coração. E soprava frio na minha barriga. Várias e várias vezes eu chorei. Eu já contava os dias para ver o meu namorado e me livrar, nem que fosse por algumas horas, de sua tortura. Ela desaparecia. Quando estava com ele eram os melhores momentos de minha vida. Mas passavam rápidos demais. Quando eu dava por mim, lá estava eu, indo embora, com a senhora de mão ossudas e enrugadas, cabelo laranja, apertando meu coração e soprando minha barriga.
- E por quê ela se foi?
- Você não soube?
- De que?
- Da guerra?
- Soube. Ele foi pra lá?
- Foi. Fiquei muito triste no dia em que ele me enviou uma carta dizendo que iria. Imediatamente peguei o trem e fui vê-lo. Viajei as doze horas até sua cidade. A tal senhora estava lá, do meu lado o tempo todo, com as imagens do último encontro. Todas novíssimas. E aos poucos foi me mostrando as imagens mais antigas, já desbotadas pelo tempo. E ela lá. Apertando meu coração. Ao chegar na estação, no meio da confusão e do empurra-empurra no desembarque, ela sumiu de novo. Procurei o meu namorado e encontrei-o muito triste. Ele confirmou que iria para a guerra e não tinha outra escolha. Aproveitamos bastante nosso fim-de-semana e ele, em nenhum momento, me disse quando voltaria. Eu também não perguntei. Mas ele me prometeu mandar cartas diariamente. Eu lhe disse que quando recebia suas cartas a senhora de cabelo laranja não se aproximava de mim até que terminasse de lê-las. Em seguida ela vinha com muito mais força que o normal e apertava meu coração.
- E quanto tempo ele ficou por lá?
- Recebi cartas por duas semanas. E a última que me mandou falava sobre uma mulher que havia encontrado numa cidade destruída pela guerra. Todo seu pelotão havia sido bombardeado e sobraram poucos com ele. A mulher sempre o olhava de longe. Até que um dia se aproximou e disse: “Amanhã a gente foge daqui!” Na carta ele me disse tudo isso e ainda disse o quanto me amava. Eu entendi que era o fim. Chorei por várias e várias noites, mas me senti amada. Sabia que ele havia ido com ela mas era a mim que ele amava. E fiquei por muito tempo com a senhora de cabelo laranja apertando meu coração sem parar. Já nem podia ir lavar as roupas no rio porque não tinha força pra me levantar.
- E como era essa mulher que ele encontrou?
- Disse que era alta e bem magra. Com uma palidez mórbida. Alguns amigos já tinham esbarrado nela antes dos bombardeios. Ela caminhava no meio de todas aquelas explosões e tiros, sem nenhum medo de ser atingida. Caminhava olhando fixo para frente, às vezes escondida pelas fumaças, às vezes pelos gritos. E foi isso.
- Então. Eu vim pra ficar no lugar da senhora de cabelo laranja. Agora sou eu quem vai apertar seu coração e te fazer sofrer. Às vezes ela virá. Provavelmente hoje vai dar uma passada aqui. Trará imagens do seu namorado e apertará seu coração. Mas eu ficarei a maior parte do tempo com você. Até que venha alguém para o meu lugar.
- Sabia mesmo que viria.
- Sim. Eu sei que me aguardava.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

APUNHALADO



Raphael Montechiari

Era um vinte e três de janeiro, quentíssimo, como era de se esperar dessa época do ano. O tempo estava nublado, mas o mormaço podia queimar a pele de quem andasse fora da sombra. Eu, como sempre fazia às sextas-feiras, fui ver o meu amor. Ninguém poderia imaginar que naquele dia ela faria aquilo. Mas fez.

Ao chegar na porta de sua casa resolvi dar uma espiada pela janela para vê-la e, em segundos ela esticou seu braço por cima do batente da janela e com uma força surpreendente, sua mão travou no meu peito rasgando-o. Senti uma dor visceral e senti meus lábios estremecerem. Estava paralisado com o susto e só conseguia observar o que ela estava fazendo comigo. Sua mão entrando e arrancando meu coração do peito. A dor era tamanha que senti minhas pernas fraquejarem e minha vista escurecer. Achei que cairia morto em segundos, mas o resto de orgulho que sobrou me empurrou para longe dela e pude fugir. Minhas mãos apoiaram a ferida para que não se esvaísse todo o meu sangue. Minhas pernas corriam numa velocidade estonteante. Parecia que elas estavam com mais medo do que eu.

Senti que não conseguiria chegar em casa consciente e então me sentei na borda do chafariz da praça. Coloquei pra fora o excesso de dor em forma de lágrimas. Lágrimas ácidas que corroíam a pele do meu rosto e faziam um caminho marcado até a boca. Depois pingavam e eu podia ver os buracos que faziam no chão de cimento da pracinha. O senhor de calças verdes e a menina com um algodão doce, que estavam caminhando em minha direção, mudaram de rota e foram pelo canteiro em direção ao grupo de pombos, que brigavam por uma migalha do pão de cachorro quente que o guarda devorava. O dono da carrocinha de cachorro-quente conversava com ele e o guarda respondia rindo, deixando escapar pelos cantos da boca ervilhas e várias migalhas de pão. E os pombos comiam e brigavam e voavam para fugir do homem de calças verdes e da menina com algodão doce que se aproximavam abruptamente, olhando para trás, fugindo do homem de cabelos penteados, camisa bege clara riscada e sapatos pretos engraxados, que estava sentado na borda do chafariz, chorando lágrimas ácidas e com o peito todo vermelho e encharcado de sangue. E, pior de tudo, sem um coração.

À minha volta as pessoas começaram a se perguntar o que havia acontecido com o atendente da farmácia. A senhora com um lenço azul na cabeça não conseguia disfarçar que olhava, mesmo fingindo estar conversando com a negra alta e gorda. Elas pareciam querer que eu percebesse que estavam me olhando para assim poderem perguntar o que havia acontecido. Os meninos que jogavam bola de gude ao lado pararam estáticos, em uma fileira, para assistir a cena. A senhora que batia a toalha na janela para preparar a mesa do jantar a sacudiu mais vezes do que o necessário. E eu me levantei pisando forte, tão forte que sentia que afundava o chão.

A partir daquele dia vinte e três de janeiro passei a seguir minha vida sem o coração. Sentia dores horríveis, principalmente quando me lembrava de que ela havia feito isso comigo. Mas já não tinha coração para odiar nem para perdoar nem para amar mais ninguém Só um buraco no peito que me trazia dores durante todo o dia.

No dia vinte e sete de janeiro ela veio até minha casa e pude perceber, já de longe, sua presença. Não sei se pelo cheiro, que eu adorava há quatro dias atrás e que agora fazia dobrar minhas dores no peito. Mas eu sabia que ela se aproximava e tranquei todas as portas e janelas. Fechei o basculante do banheiro. Era bem pequeno, mas seus olhos poderiam passar por ali. E sob a porta coloquei um cobertor enrolado, vedando qualquer passagem dela ou de sua voz ou de seu terrível cheiro. Ainda assim me senti inseguro, após ouvir as batidas na porta. Fugi pela janela dos fundos e desapareci no quintal. Passei pelo curral do Coronel Alvilar e subi pelas ladeiras do cemitério até chegar ao morro da caixa-dágua. E lá fiquei, por três dias e três noites. Até que senti que alguém se aproximava. Não me movi e ouvi os passos de três ou quatro pessoas. Elas conversavam e falavam que ali era o lugar que alguém sempre se escondia, desde pequeno, quando estava com medo.

Durante a invasão dos rebeldes, quando eu era bem pequeno, vi meu pai ser morto e minha mãe fugir com minha irmã, ainda um bebezinho, para o morro da caixa d’água. E ela me mandou segui-la. Ali permanecemos por duas semanas, até que as tropas do governo vieram e espantaram os rebeldes para as montanhas. Eu sempre lembrava disso com tristeza e conforto. Tristeza por ter perdido meu pai. Conforto por poder contar com minha mãe me guiando e protegendo. Mas agora não sentia nada. Acho que todo tipo de sentimento foi-se embora com o coração. E ele estava com alguém que não tinha coração. Talvez por isso tenha querido se apoderar do meu. As pessoas agora iam embora e eu reconhecia a voz da minha mãe. Mas eu não sentia nada por ela. Nem piedade, por talvez estar sofrendo por mim. Ela não poderia me culpar.

Segui pelas montanhas, pelo caminho que os rebeldes haviam seguido há quase dezenove anos atrás. Andei por cerca de vinte dias beirando o rio e subindo as montanhas. As corredeiras eram assustadoras e talvez fosse um bom lugar para se jogar um corpo sem coração. Fui caminhando e passando em várias cidadezinhas da região. Uma região árida e de minúsculos povoados, todos cheios de corações, olhando com piedade para um sofredor. O sol já estava bem quente quando pedi um copo d’água a uma jovem, de cabelos cortados, pretos, que estava na porta da venda onde trabalhava. Era uma tarde muito quente e quase ninguém caminhava nas ruas. Só ficavam parados nas sombras, nas portas de casa ou das lojas, provavelmente pelo calor que dentro fazia também.

- A água não está gelada, mas também não está quente. Aguarde aqui fora se não for comprar nada. E se for comprar, entre sem as mãos. Deixe-as do lado de fora e me indique o que quiser que eu pego para você. Não suporto mais ladrões aqui na venda do meu pai.

Ela entrou e eu não quis acompanhá-la. Voltou com um copo da água mais limpa e brilhante que eu já havia visto. Quando notei, o copo estava vazio e ela sorria para mim. Pegou o copo em silêncio e entrou. Nem pude agradecer, pois ainda estava tentando me lembrar do sabor da água que eu não havia sentido. O tempo passa tão depressa que só ficamos com as lembranças. Mas dessa vez foi tão depressa que a lembrança se foi com o tempo. Ela voltou com outro copo e com outro sorriso.

- Você estava mesmo com sede! Faz muito calor aqui e pela poeira no seu sapato e na sua roupa, você vem de longe. Desculpe achar que você era um ladrão, mas só esse mês três forasteiros já nos roubaram. Suas mãos são tão rápidas que só damos falta das coisas quando já estão longe. E, apesar de sujo, parece um rapaz de bem. Mas é melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água peça no armazém logo ali na frente.

Eu agradeci da boca pra fora. Não poderia ser de coração. Mas agradeci. Fui andando, já mais revigorado, e não pude evitar olhar para trás. Ela ainda acenava um adeus e, quando me viu olhando, fechou o sorriso e entrou na venda.

Caminhei por mais dois meses por todas as vilas, povoados e cidades da região até que as dores no peito passaram. Mesmo quando eu me lembrava dela. Do meu antigo amor. Ainda havia vestígios de dores, mas eram pouquíssimas. E havia uma casca no peito que eu não retiraria. Bastaria eu continuar andando por mais um tempo que ela cairia. E foi o que aconteceu. Com mais cinco meses de caminhada, até o final do vale pequeno, e após dar a volta pelas montanhas do norte e começar a caminhada de volta, vi a casca cedendo e dando lugar a uma imensa cicatriz que nunca mais me faria esquecer o que aconteceu.

Antes de chegar em casa passei por aquele povoado onde eu havia bebido a melhor água de toda a minha vida. Retornei àquela venda e o tempo já estava bem mais fresco. Mas eu queria beber mais um pouco daquela água. E estavam todos lá. Como se nunca tivessem se mexido. E a jovem, de cabelos pretos cortados, já sorria para mim.

- Água?

Eu sorri de volta e disse que sim. Mas pedi que enchesse uma garrafa e dei-lhe algum dinheiro. Ela agradeceu e pegou uma linda garrafa pintada com flores amarelas e folhas verdes. Entrou e voltou com ela cheia da melhor água que poderia existir. Trouxe também uma pequena pazinha e com ela, subitamente, furou meu peito, sem me dizer nenhuma palavra. Só com um sorriso no rosto. Abriu bem para os dois lados e com a outra mão depositou algumas sementes. Em seguida fechou bem e bateu com as costas da pazinha em cima para ficar bem fechado. Eu assistia a tudo atônito, mas não sentia dor. Pelo contrário. Foi a melhor coisa que havia me acontecido nos últimos tempos.

-É melhor ir logo, pois já estão olhando para cá e mulher direita não fica conversando com estranhos. Se quiser mais água, peça no armazém logo ali na frente.

Agradeci com água nos olhos. Poucas mas verdadeiras. Senti algo por ela que não saberia descrever nem com mil palavras. Sei que já havia sentido algo assim antes, mas só sei. Sinto que nunca havia sentido nada assim em toda minha vida. E de lá saí com uma vontade enorme de olhar para trás, mas não queria tirar aquele lindo sorriso do seu rosto.

Cheguei no morro da caixa d’água e desci pelas ladeiras do cemitério. Passei pelo curral do Coronel Alvilar, entrei pela janela de trás, que ainda estava entreaberta, e me deitei.