sábado, 16 de janeiro de 2010

VIZINHOS

Raphael Montechiari


Sempre agi da melhor maneira possível para poder conhecer o Paraíso. Sempre tratei bem todos os meus tios e minha avó Denize Valdachio. Apesar das reclamações dela sobre as rosas. Sempre que íamos visitá-la, o jardim estava cheio delas. Vermelhas, rosas, amarelas e brancas. E todas deliciosas. Comia quantas eu podia até ela descobrir e me bater. Batia com uma varinha de goiabeira. E quando eu a via saindo da porta já gritando “Vou te pegar, seu moleque!” eu comia o máximo de rosas que podia e não parava. Ela vinha em passos lentos pelo caminho entre as roseiras e desviava um pouco a direção para arrancar um pequeno galho da goiabeira. Então voltava à rota anterior, já retirando as folhas, deixando a vara limpinha e lisa para que quando entrasse em contato com minhas pernas branquelas, não deixasse nenhuma dúvida de que ela me havia feito sentir dor. E eu continuava, cada vez mais acelerado, a comê-las. Estático. Só esperando ela chegar e me punir com as varadas. E como doía!

Isso não me levaria para o inferno. Mas o desejo de matar o senhor Juliano Carreras me levaria direto para lá. Minha mãe dizia que só de pensar certos pecados eles já estavam sendo cometidos. E eu pensava muito nesse pecado. Fui várias e várias vezes me confessar para poder me livrar dele. Mas no dia seguinte, esse mesmo pecado já acordava na minha cabeça. Então, pela manhã, ia até o padre me confessar de novo. E na outra, e na outra e na outra. Até que o padre me disse que eu deveria contar para ele quem eu queria matar. Talvez para tentar livrar o Senhor Juliano Carreras. Desconversei e disse que não era ninguém. A vontade de matá-lo foi maior que a de ir para o Paraíso. E desde então só tenho pensado nisso.
Desde que ganhei meu saxofone fui sempre muito dedicado. Bem antes de ganhá-lo minha mãe havia me presenteado com cinco discos de Jazz que eram do meu pai. Ele tinha largado minha mãe para ir morar com outra mulher em uma cidade bem distante. E os discos ficaram. E eu os herdei. Charlie Parker era o melhor deles. O disco “The Complete Savoy Sessions” tocava diariamente na minha vitrola, que na verdade não era minha, mas da minha mãe. Mas eu a chamava de minha porque todas as coisas que eram da minha mãe ela dizia que eram minhas também. Mas as minhas não eram dela. Os discos eu não emprestava para ela ouvir, apesar de nunca ter me pedido. O saxofone também não a deixaria tocar. Primeiro porque não sabia. E segundo porque era meu e eu não iria dividi-lo com ninguém. Nem mesmo com minha mãe.
O fato é que o Charlie Parker me levou a treinar diariamente o saxofone. Eu tocava todas as músicas do disco. Do início ao fim. Os temas, improvisos e até os ruídos mais discretos que as chaves do saxofone faziam na gravação. A interpretação dele era algo divino. O Charlie Parker deve ter ido para o Paraíso. Talvez ele tenha podido estudar seu saxofone sem ter ninguém para atrapalhá-lo. Talvez ele tenha até comido todo o roseiral da avó, mas ele podia estudar o solo de “Donna Lee” e não ser perturbado pelo vizinho. E por isso ele não tenha querido matar ninguém. Talvez não.

O Senhor Juliano Carreras morava no apartamento ao lado do meu. Após eu ter seguido a carreira de músico e ter começado a tocar na banda da cidade, passei a morar sozinho num apartamento e comecei a receber vários convites de músicos e cantoras famosas. Rosa Lucinha foi uma delas. Esteve pessoalmente no meu apartamento para me falar do seu desejo de me levar para tocar com ela. Rosa Lucinha era a cantora mais famosa da época e tinha todos aqueles seguranças quando me chamou lá da entrada. Subiu a escada do pequeno prédio em que eu morava, no terceiro andar. E todos os vizinhos admiravam em que ponto eu havia chegado ao ter visitas tão ilustres. Mas eu tive que recusar o convite de Rosa Lucinha, apesar de ter percebido que os seguranças dela não gostaram muito da minha decisão.
O fato é que o Senhor Juliano Carreras não gostava de ser perturbado pelo som do meu saxofone. E eu precisava estudar mais do que nunca, já que agora era músico profissional e tocava na banda da minha cidade, além de ter sido convidado por Rosa Lucinha para acompanhá-la em sua turnê nacional e internacional. Eu recusei, pois queria fazer o teste para entrar na Orquestra dos Fuzileiros Navais. Esse era meu objetivo principal. Seria um músico militar, com todos aqueles uniformes e um chapéu exclusivo da Orquestra dos Fuzileiros Navais. As músicas que eles tocavam eram todas muito bonitas, mas quando eu entrasse iríamos tocar só as músicas do Charlie Parker. Inclusive as músicas do outro disco que eu havia visto na loja. Eu teria mais dinheiro e poderia comprar o outro disco do Charlie Parker e treinar todas elas. E toda a Orquestra dos Fuzileiros Navais iria executá-las.
Mas para isso eu precisava estudar muito. Acordava às seis da manhã, tomava meu café e começava a estudar, música por música, solo por solo. Tocava o dia inteiro até escurecer, quando minha barriga me lembrava que eu precisava comer. Nos finais de semana ia tocar na banda da minha cidade para ter dinheiro para pagar meu aluguel, pois ninguém pode viver sem trabalhar. Minha mãe me ensinou isso muito bem e ainda por cima comprou o outro disco do Charlie Parker para me dar no Natal. Eu ouvi seiscentas e vinte e duas vezes sem parar e me apaixonei pelo disco. Naqueles dias eu não dormi, nem comi e nem fui tocar na banda da cidade. Só ouvi o disco por seiscentas e vinte e duas vezes. O Senhor Juliano Carreras provavelmente não gostava do Charlie Parker porque, depois disso, começou a me empestear a mente. Me disse para estudar meu saxofone na puta que pariu e ameaçou quebrar minha vitrola. Minha mãe, nessa época, já havia deixado de vez a vitrola comigo, pois não ouvia nada nela. A vitrola também já tinha sido do meu pai que, quando largou minha mãe e foi morar numa cidade bem distante com outra mulher, a deixou em casa. Acho que não gostava muito dela. Eu jamais deixaria uma vitrola e cinco discos tão bons quanto aqueles para ir morar tão distante assim. Ele poderia ter ficado conosco e assim eu o ensinaria a tocar saxofone e mostraria os principais segredos de Charlie Parker. Também o levaria para me assistir tocando na banda da cidade e tenho certeza que ele não iria se arrepender.

Eu passei a ter que ir para o Morro da Consolação estudar. Era um morro bem alto de onde dava para ver toda a cidade. Ele era chamado de Morro da Consolação porque há muito tempo atrás havia ali uma igreja que era da virgem da Consolação. Mas durante a revolução destruíram-na e atearam fogo nela e nas casas vizinhas. Desde então ninguém mais morou por lá e retiraram os escombros para que ninguém mais se lembrasse desse dia. Mas todo mundo se lembra porque até hoje o chamam de Morro da Consolação. E era lá que eu tocava meu saxofone. Parecia que eu havia desaprendido tudo. Estava bem destreinado e acho que quando tocava com o Charlie Parker eu ia bem melhor. Também ia bem quando tocava com a banda da cidade. Mas ali sentado, sozinho, parecia não conseguir me concentrar e não saía nada de bom. Só que eu precisava estudar. O teste para a Orquestra dos Fuzileiros Navais seria em breve e eu precisava estar preparado. E como eu não podia mais estudar em casa, pois havia enfurecido o Senhor Juliano Carreras, teria que estudar por ali mesmo. E assim foi durante treze dias. A cidade toda ouvia o som do saxofone, mas sem saber de onde vinha. Acredito que alguns achavam que seria uma dádiva de Deus para confortá-los pelo sentimento de perda da Igreja da Consolação.
As músicas que eu tocava ainda estavam longe de serem aquelas que eu tocava quando estudava em casa. E agora eu ouvia muito baixo os discos em casa para não perturbar o Senhor Juliano Carreras. O problema é que ele chegava de madrugada, bêbado e com umas negas, que falavam alto e riam o tempo todo. Depois ficavam de gritarias e pulando em cima da cama, fazendo-a ranger tão alto que me tirava o sono. E eu precisava acordar cedo no outro dia para tomar meu café, pegar meu saxofone e subir o Morro da Consolação para estudar. Por várias vezes eu suportei aquela situação até que um dia de manhã bati em sua porta, depois de uma noite de baderna, e revelei para ele minha insatisfação com a situação, lembrando-o ainda que eu estava estudando no Morro da Consolação somente para não o incomodar mais. Na verdade ele nem me deixou chegar na metade do que eu queria dizer. Me mandou para a puta que pariu por acordá-lo tão cedo e disse que se eu voltasse a incomodá-lo, me daria uma porrada dentro da cara.
Seu Juliano era bem grande, não muito forte, mas com braços e pernas compridas e ossudas. Já estava um pouco careca e tinha uma cara de bravo. Quando me ameaçou e fechou a porta na minha cara eu decidi não incomodá-lo mais. Uma porrada dentro da cara de um sujeito grande como ele deveria machucar pra cacete. Então achei por bem ir dormir no Morro da Consolação todas as vezes que ele fizesse suas farras. Fiquei um pouco assustado em saber que ele iria para o inferno. E ele com certeza iria, pois uma pessoa que dá uma porrada dentro da cara da outra não teria outro fim. Minha mãe já havia me dito que só de pensar certos pecados você já os havia cometido. Passei a ter muito medo dele depois que esses pensamentos me visitaram. Eu havia conhecido uma pessoa que iria para o inferno e que conheceria o demônio.
Não gosto muito de pensar essas coisas porque me deixam confuso e nervoso. Porém refletindo um pouco mais, descobri que meu próprio pai iria para lá também. O padre já havia dito na missa que o adultério é pecado. E quando meu pai fugiu com outra mulher para uma cidade muito distante, ele cometeu adultério. E ele está mais perto do inferno do que o Senhor Juliano Carreras. Ainda largou uma vitrola, cinco discos e sua família para trás.

O fato é que numa certa tarde de estudos no Morro da Consolação o tempo fechou rápido e, antes que eu me desse conta, caiu um aguaceiro tão pesado que eu nunca tinha visto igual. Como eu não tinha a mala para guardar o meu saxofone, tentei escondê-lo debaixo da minha camisa. Mas ela já estava toda ensopada e vi escorrer água por dentro dele e por todas as suas chaves. Então corri o mais depressa que pude. Passei por debaixo da cerca de arame farpado e peguei a pequena trilha que levava de volta à cidade. A trilha estava muito molhada e escorregadia e, na primeira descida, eu caí e meu saxofone caiu embaixo de mim deslizando pelo barranco. A chuva não dava trégua e nem se podia ver a cidade de tão branca que estava a vista. Era muita água e meu saxofone agora havia caído numa grande poça de lama. Tive que descer pelo barranco segurando pelas moitas de capim até ter altura suficiente para saltar. Consegui resgatá-lo e cobri-lo novamente com minha camisa. Ao chegar em casa notei que haviam quebrado quatro chaves do saxofone e que eu deveria voltar para achar os pedaços. Fiquei até escurecer sob aquela chuva, procurando no barranco do Morro da Consolação pelas quatro chaves do saxofone, mas não encontrei nada. Voltei por mais nove dias seguidos e passei os nove dias inteiros procurando pelas quatro chaves que haviam quebrado. Por fim, descobri que não haveria jeito de encontrá-las e descobri qual seria a solução: eu tinha que matar o Senhor Juliano Carreras.

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