terça-feira, 5 de janeiro de 2010

EM BRANCO E PRETO

 Raphael Montechiari

- Sim. Aqui estou eu, doutor. Voltei depois de vários anos sem precisar pisar num oftalmologista.
- Mas não é o mesmo problema daquela época, é? Você era bem garoto quando veio aqui. Sua mãe te trouxe. Me lembro dela. Como é que ela tá?
- É. Ela tá bem. Em casa, fazendo o almoço pra mim e pro pai. Sabe que o pai, mesmo podendo se aposentar continua trabalhando?
- Ih. É assim mesmo. Eu também já poderia ter me aposentado. Mas não quero me sentir inútil não, sabe? E também, que saber? Não consigo me imaginar sentado o dia inteiro jogando cartas numa praça ou andando atrás de promoções nos supermercados.
- É. Mas acho que ele poderia pelo menos pegar mais leve. Na idade que ele tá não pode ficar exagerando!
- Isso é verdade. Mas me conte, rapaz? O que o traz aqui depois de tanto tempo?
- Então, doutor. Estou há uma semana com um problema que nunca ouvi falar que ninguém tenha tido antes. Talvez o senhor, que trabalhe com isso, já tenha visto.
- Já vi tantas coisas que você nem pode imaginar, filho. Sente alguma dor na vista?
- Não. Nada de dor.
- Então vem cá. Antes de me dizer qualquer coisa, vou fazer uma análise geral da sua vista. Às vezes posso até adivinhar antes mesmo de você me dizer. Há tanto tempo trabalhando com isso nada mais é novo aqui. Senta aqui. Isso. Olha para essa luz amarela e fique com os olhos bem abertos.
- Olhar para essa luz aqui, né?
- Claro. Por acaso está vendo outra luz amarela?
- Nem outra luz verde. Só tem uma luz aqui.
- Tem razão. Olhe pra luz.
- Certo.
- Hum. Tudo normal. Nada que possa, à primeira vista, parecer de errado. Vem. Levanta com cuidado pra não bater a cabeça na lâmpada. Isso. Senta aqui e me diga as letras que vou te indicando.
- A, F, S, K, M, D e G
-Ótimo. Na linha de baixo.
- U, F, R, T, Q, A e P.
- Perfeito. Agora essa aqui é a última. Vamos lá. Me diz as letras.
- G, F, E, R, W, G e X.
- Tudo certo! É. Não tem nada de errado a princípio. Me rendo! Pode então me dizer o que está ocorrendo.
- Doutor, há uma semana, eu comecei a ver algumas coisas como se estivessem desbotadas. Por exemplo: as árvores não estavam com o verde tão verde e o céu estava ficando mais acinzentado, mesmo com o tempo limpo e com sol. Inclusive o sol foi ficando mais branco. Durante toda a semana foi tudo ficando assim, desbotado. E foi ficando cada vez mais até chegar a quinta-feira e estar tudo assim, como tá hoje.
- Assim como?
- Tudo em preto-e-branco. Não vejo cor nenhuma. É como se estivesse vendo tudo numa televisão antiga, entende?
- Aham. Isso é, claramente, um daltonismo. Você está cego para as cores. Geralmente isso ocorre só com o vermelho ou só com o verde, fazendo você confundir as cores pela falta das outras. Mas o seu caso é mais grave. E eu ainda não tinha visto desse jeito. Você tá cego pra quase todas as cores.
- E isso tem cura?
- Creio que não, meu jovem.

Saí do consultório um pouco triste, um pouco perturbado. Estava tudo tão sem graça! Me lembro da semana passada, quando eu via tudo colorido. Os olhos verdes da Beatriz Lourenço e seus cabelos amarelos. Uma blusa branca e uma calça jeans azul clara. Na minha mente, tudo ainda é colorido. Pena que meus olhos me escondem as cores. Voltei para casa e fiquei dois dias de olhos fechados. Não queria mais comer. Uma banana cinza, um alface branco e um bife preto. O tomate parecia estragado e a maçã era horrível. Nada tinha graça. Não iria mais para a praia ver um mar feio, com gentes branquelas ou totalmente pretas. O bronzeado da pele da beatriz Lourenço só estaria nas minhas lembranças. E suas roupas todas seriam sem nenhuma graça. Fiquei dois dias em casa e liguei para ela. Ouvi-la era tão bom que acho que não queria ver a dona daquela voz em preto e branco. Acho que perderia o encanto.

- E como você está amor?
- Estou mal.
- O quê? O quê que aconteceu?
- Nada do que vejo tem mais graça. Tá tudo preto e branco. Você nem imagina que tristeza que é. Perdi a fome e nem tenho saído de casa.
- Mais você tem que procurar um médico.
- Já fui. Ele me disse que eu sou um daltônico como ele nunca tinha visto antes.
- Meu Deus! Mas não te passou nenhum remédio?
- Ele disse que não tem cura.
- Então você não vê cor nenhuma?
- Vejo. Só o preto e o branco.
- Mas desde quando você tá assim?
- Desde a semana passada.
- E por que não me ligou antes?
- Porque eu queria te ligar já dando boas notícias. Mas como elas não iam vir mais resolvi te ligar pra contar.
- Quando você vem?
- No próximo final de semana.
- E o seu trabalho?
- Acho que tá tranqüilo. Dá pra identificar as moedas e notas pelos números. Só que quando descobrirem o que aconteceu comigo devo ser trocado de cargo. As cores ajudam muito na distinção das notas e isso pode me atrapalhar um pouco, lá no banco. Sei lá.
- Ai, meu Deus. Coitadinho. Mas vai dar tudo certo.
- Eu queria muito te ver. Depois que te conheci passei a contar cada segundo sem você para chegar mais rápido nosso encontro.
- Eu também. Mas já tá chegando.

Apesar de faltarem cinco dias para eu a vê-la novamente pareciam cinco anos. E a vida, que já estava sem graça, agora estava sem cores. Fui ao trabalho durante toda a semana sem falar nada a ninguém. Algumas confusões, mas nada de grave que alguém pudesse notar. Durante o trabalho eu olhava para o relógio de dez em dez segundos e ele parecia não andar. Às vezes acho que voltava pra trás. Ficava ali, contando o dinheiro uma, duas, três vezes e olhava para ele. Preto. Branco. Com ponteiros pretos. Antes eram vermelhos. Quase parados. Eu achava que os segundos eram rápidos, há um tempo. “Preparo o relatório em um segundo!” Era o que me diziam, quando queriam dizer que seria rápido. E eu sempre disse isso. Mas o segundo é muito lento quando se está esperando. E eu posso jurar que, desde que eu parei de contar a terceira vez aquele bolo de notas o segundo não passou. Estava ali, quase chegando ao outro traço do relógio. Eu via que estava andando, mas não chegava jamais. E quando chegou percebi que tinha outra distância astronômica até o outro. E isso precisaria acontecer sessenta vezes para completar o minuto. E sessenta vezes sessenta para completar a hora. E isso tudo vezes vinte e quatro. E ainda faltavam cinco dias para eu encontrá-la! O tempo não é o mesmo! Não pode ser o mesmo! Quando estou com a Beatriz Lourenço eu não consigo sequer ver o ponteiro passar pelos segundos. Acho que ele anda de minuto em minuto. Talvez de hora em hora. Mas agora eu posso jurar que está ainda indo para o terceiro segundo, desde que eu parei de contar aquela terceira vez o bolo de notas. E tenho certeza que o relógio está funcionando bem. A estagiária traz o pacote de notas de um em um minuto. E ela não chega!

- Já tá na hora do almoço?
- Quem dera. Acabamos de chegar, moço.
- Não é possível!

O tempo não passava. E o mundo ao meu redor estava em preto e branco. Achei que eu iria enlouquecer. Até que dei mais uma olhada no relógio e, graças a Deus, tinha chegado ao quinto segundo. Bastava eu esperar mais cinqüenta e cinco para completar um minuto e aí só faltariam cinqüenta e nove para ter passado a primeira hora. Fiquei todo o expediente tentando descobrir o que poderia ter acontecido com meus olhos. O tempo, acreditem, passou e deu minha hora de sair.
Do trabalho fui direto para casa, fechar os olhos e sonhar colorido. Minha mãe estava muito preocupada e a ouvi ao telefone contando para nossa tia a situação. Tia Carmem sempre tinha solução pra tudo e ensinou como fazer um remédio para a vista. Mas não deu certo. Depois mandou uma simpatia, que também não deu certo. E nem rezas aos santos mais fortes me curaram daquele mal.

No dia seguinte acordei com o barulho irritante do despertador. Liguei o rádio, como de costume e fui me barbear. Ouvi algumas notícias sobre o trânsito e quando o locutor anunciou “Liberdade”, a famosa música do Castro Alencar, ouvi somente ruídos. Fui até o rádio para sintonizar e nada. Mudei de estação e os ruídos lá estavam. Desesperado, cheguei até a minha mãe, que ouvia também sua rádio e perguntei:

- Mãe. Deu algum problema nas rádios? Que barulheira estranha! Isso não incomoda a senhora?
- Que barulheira o que, menino! Barulheira é aquilo que você ouve. Aquele rock pesado. Isso é Castro Alencar!
- Isso?
- É. Música de qualidade!
- Mas eu só estou ouvindo ruídos.
- Como assim?
- Como se estivesse fora do ar.
- Ai, meu Deus. E sua vista? Continua em preto e branco?
- Sim.
- Minha Nossa Senhora! O que tá acontecendo, menino?

E realmente eu não podia mais ouvir música. Passava e via pessoas cantando. Mas só via. Da boca delas saía ruídos, como de ratos guinchando ou de bois mugindo. E eu olhava espantado para as pessoas que sorriam para mim. E os passarinhos faziam um barulho que também me irritava. O que teria acontecido comigo?
De volta ao banco. De volta à batalha contra o relógio. Lá estava ele. Preto e branco. Segundo por segundo, se arrastando. E agora, quando soava a música do relógio, avisando a hora certa, era um sofrimento. Um barulho ensurdecedor e que me incomodava absurdamente. Uma senhora, na fila me viu tapando os ouvidos e a vi sorrindo. Sua gengiva cinza, seu cabelo cinza claro e sua cara branca. Roupa preta e tudo mais que a cercava era preto e branco. Fui ao banheiro. Lá estava alguém escovando os dentes e fazendo ruídos com a boca. Desisti e voltei para a contagem de notas. Ainda bem que não trabalho num lugar que tenha música ambiente. Estou desgraçado! A única coisa que me resta na vida é a minha Beatriz Lourenço. Com ela, mesmo em preto e branco e até sem música tudo vai ser melhor.
No dia seguinte, o ruído estava mais baixo, pois minha mãe, sabendo como eu estava, colocou o rádio bem baixinho para não me atrapalhar. O café estava sem doce e reclamei com ela.

- Mãe. Esqueceu de colocar doce no café?
- Não acredito. Claro que coloquei. Acabei de tomar. Perdeu o paladar também?
- Não. Sinto o sabor amargo do café. Mas não sinto o doce. E nem o salgado do queijo.
- Santa Maria, mãe de Deus. Rogai por nós pecadores.
Resumindo. Sem cores, sem música, sem doce nem salgado. O que mais poderia me acontecer? Cheiro, tato?

O tempo, enfim passou, e chegou a hora de viajar. Não que tenha sido rápido, mas passou. Torturantes cinco dias. Logo de manhã acordei, me levantei e tentei não prestar atenção em mais nada que tivesse parado de funcionar no meu corpo. Peguei minhas coisas e fui direto para a ferroviária. Assim que o trem chegou, entrei e tive que agüentar todos os ruídos que saíam das caixas de som da estação. Adorei quando pararam as músicas e deram os avisos de partidas de trens. Nem reparei nas moças que passavam por mim, com roupas em preto e branco. Pareciam todas uniformizadas. Entrei e procurei um jeito de dormir. A única coisa que me deixava feliz era estar com Beatriz Lourenço. Dormi. Sonhei com um parque cheio de árvores em preto e branco. Então Beatriz vinha com um pincel e coloria tudo. As árvores ficavam lindas com suas folhas verdes e o tronco marrom. O lago bem azulzinho, e um cisne branco nadava nele. Com o bico laranja. Meninas brincavam, com vestidinhos rosas e o céu era de um azul sem fim. Beatriz surgia de novo, com um violino, tocando lindas melodias e as meninas cantavam e dançavam. Depois jogavam balas e chocolates. Deliciosos. Doces.

Assim que acordei com o apito do trem notei que havia chegado e a música “Liberdade”, de Castro Alencar soava nos alto-falantes da estação. Abri os olhos e pude ver que tudo estava colorido. Mais até que o normal. Limpei meus olhos e a vi. Linda. Loira, de olhos verdes, pele rosada e camisa branca com listras azuis. Sua saia era azul, combinando com as listras e ela trazia uma caixa de bombons. Eu a abracei, como se estivesse passado anos longe dela e dei o melhor beijo de toda minha vida. Então contei que estava tudo normal e contei o que havia me acontecido durante a semana. Eu olhava para cada canto e apreciava cada cor como eu nunca havia apreciado antes. Fomos para casa comendo bombons doces e almoçamos delícias salgadas, com seus pais coloridos e com músicas lindas ao fundo. E desde então nunca mais fiquei longe dela.

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