sábado, 9 de janeiro de 2010

AMANCIO PENSADOR



  Raphael Montechiari

           - Oi Amâncio. Como vai? Quem bom que veio!
            - Olá, Sebastião Conselheiro. Realmente foi uma tristeza e o mínimo que podemos fazer é vir aqui compartilhar nossa dor com a família.
            - É. Uma tristeza mesmo! Amâncio. Pode ficar à vontade. Pegue umas torradas e um chazinho ali. Vou aqui falar com Dona Renilda Teixeira.
            - Não se preocupe comigo, Sebastião Conselheiro. Daqui a pouco me sirvo.
            - Fique à vontade.
            É muito feio ficar fingindo, Sebastião Conselheiro. Você queria o velho morto há muito tempo e agora fica fazendo cena aí.
            - Olá Senhora Glorinha. Meus sentimentos.
            - Oi Amâncio. Obrigada.
            Essa aí é a única que realmente gostava do velho. E cuidou dele até o último momento. Deu banho, deu remédio e deu amor a ele durante a vida toda. Mas a coitadinha nem sabe que...
            - Amââââncio.
            - Olá Seu Cláudio Dumas.
            - Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?
            - Não. Não soube.
            - Pois é, Amâncio. Eu estava fazendo uma visita à tia Glorinha e fui vê-lo. Ele estava meio acordado e parecia lúcido. Me disse algumas coisas sobre literatura, que não entendi muito bem. Depois me perguntou sobre minha mãe e eu o lembrei que ela já havia partido.
            - Nossa. Ele nem se lembrava? Coitadinho.
            - Nem lembrava. Mas já estava nas últimas, né? Depois te conto mais. A Lisandra chegou.
            Esse fede demais. Ô homenzinho pra ter cheiro de inhaca! Olha lá. “ Soube que ele esteve comigo nos últimos momentos?” Deve ter falado isso pra todo mundo. Que marola! Eu já tava ficando sem ar. Ainda mais de paletó. O velho deve ter morrido de falta de ar! Vou encostar num canto que daqui a pouco passam uns canapés.
            - Olá, Dona Esmeralda. Como vai?
            - Tudo bem, meu filho.
            - Tudo indo, né Dona Esmeralda?
            - É meu filho. Mas a vida é assim mesmo. A única coisa que não falha é a morte. Chega pra todo mundo.
            - É verdade.
            Vou ter que esperar mais um pouquinho pra me despedir do velho. Ele era boa gente! Não gosto de ficar me lembrando dele, mas preciso arrumar um jeito de ficar mais triste e até de chorar, se possível. Ele merece algumas lágrimas.
            - Judite Gouveia! Como é que você tá?
            - Oi Amâncio.
            - E a sua filhinha. Está lindinha.
            - É. Já está uma mocinha. Fala oi com o Tio Amâncio.
            - Oi tio Amâncio. Fiz “isso”de anos.
            - Que bonitinha! Quatro aninhos?
            - É, né filhinha? Amâncio, você viu a cara-de-pau da Lurdinha Nassar, sentada ali na entrada?
            - O quê? Não tinha reparado, menina. Mas é mesmo uma cara-de-pau!
            - Dá vontade de ir lá e baixar o barraco com ela. Mas o velho não merece.
            - E ela tá chorando o quê? Roubou tudo que o velho tinha e agora tá aí. Deve estar com medo de assombração.
            - Nem me fale, Amâncio! Essa noite eu tive um sonho terrível! Sonhei que o velho estava num bote, com a Julinha nas costas, como ele costumava fazer. Aí caíram os dois do bote. Quando acordei vi um monte de água no chão. Acho que ele voltou pra brincar com a minha menina.
            - Que isso, Judite! Onde já se viu morto voltar?
            - Quê? Já ouvi vários relatos. E a água? De onde veio?
            - Tira essas coisas da cabeça, mulher! É que você estava impressionada.
            - Impressionada....
            - Vou ao banheiro.
            Desconjuro! E eu lá vou saber se não foi ele mesmo que quis dar um passeio com a menina e molhou a casa toda? Desconjuro credo!
            - Com licença, querida! Licencinha, garotinho. Olá Dona Ruth. Meus sentimentos.
            - Obrigado, Amâncio.
            - Com licença, jovens.
            Quanta gente! Nessa cidade morta, funeral é evento que não se falta. E que banheiro mal cuidado! Espelho quebrado. Gente porca! A fechadura tá agarrando. Fecha, maldita! Ai, caralho! Quase prendi o dedo nesta porra! Aaaaaaaaaa!! Como é bom mijar! Aaaaaaaaiii! Que alívio! Já tem gente forçando a porta. Aquela cara-de-pau teve a coragem de vir. Que coragem! Vai dar confusão no enterro do velho. Acho que vou avisar pra ela sumir daqui, antes que dê merda!
            - Já vou! Não tem educação não? Que coisa!
            Torneira que não fecha direito! Vai ficar escorrendo água. O que é que eu posso fazer?
            - Calma. Não tá vendo que tem gente?
            - É que eu tô apertada!
            - Sua mão devia te ensinar que tem que esperar sua vez. Quem tá lá dentro tá apertado também!
            - Desculpe. Me deixa entrar logo!
            - Essas crianças...
            Não têm um pingo de educação. Igual à mãe. Tomara que não vire uma piranha, como ela. Dá pra qualquer um. Olha ela lá. Mas é gostosa a filha da puta, né? Se insinuando pro Devair Toledo. Deve estar comendo ela direto! Gracinha Nunes. Até o nome é de puta!
            - Bom dia, Dona Cleuza.
            - Bom dia, Amancio. Que tristeza, né?
            - É sim, dona Cleuza. Mas Deus sabe o que faz.
            - É. Já era hora dele, né?
            - Era sim, dona Cleuza.
            - E o seu mais velho? Não veio?
            - Veio não. Ficou com a mãe em casa. Ela não gosta muito de enterros.
            - Ah, sei. Ninguém gosta, né? Mas quem somos nós pra contestar os desígnios de Deus, né meu filho?
            - É sim, dona Cleuza. E o padre, ainda não chegou?
            - Já sim. Está comendo umas torradinhas com chá.
            - Ótima idéia. Vou ver se como alguma coisa também.
            - Come sim, Amâncio.
            Olha lá a safada da Gracinha. Até se esqueceu que está no funeral do tio. Mostrando os peitos pra quem quiser ver. E tá doida pra dar hoje. Só que escolheu o mais lerdo. Se ela tivesse conseguido ficar vinte minutos sozinha eu já teria chegado nela e aí ela ia ver. Mas não consegue ficar um minuto sem dar.
            - O que foi, Judite? Chora não!
            - Estou lembrando do velho. Ele me levava pra passear no parque e sempre comprava presentes pra todos nós.
            - É mesmo. Se lembra do dia da ventania?
            - Claro. Ele estava com...
            Como eu vou fazer pra sair com ela daqui sem que ninguém perceba? Primeiro tenho que tirar o Devair Toledo dali senão, daqui a pouco, mesmo ele sendo lerdo, ela vai pegar ele pelo pescoço e arrastá-lo para um quarto desses.
            - ... e o chapéu de todo mundo voando.
            - É mesmo. Agora, olha a demônia levantando pra ir vê-lo. Acho que se ele estivesse vivo daria na cara dela.
            A filha da Gracinha está de novo na fila do banheiro. Acho que já tenho um plano.
            - Ah Judite! Se eu fosse mais ligado ao velho daria um soco na cara dela. Acho que todo mundo que está aqui e gostava dele iria aplaudir.
            - Até ele vai aplaudir, Amâncio.
            - Vai mesmo!
            Vou fazer a Judite arrumar uma confusão com essa velha. Tranco a filha da gostosa no banheiro e deixo ela chorar um pouco. Então, durante a confusão Devair vai sair pra separar a briga da irmã e...
            - Olá Clarinda. Meus Sentimentos.
            - Que Deus o tenha, né Amâncio?
            - É sim, Clarinda.
            Então eu chego com a filha dela no colo e falo que está querendo ir embora, pois ficou presa no banheiro. Aí...
            - Você acha que quem morre pode voltar, Amâncio?
            - Claro que não, Judite. Isso é coisa da sua imaginação!
            - Eu acho que vi o dedo do velho mexendo.
            - Foi não, mulher. Ele está mortinho da silva e só vai voltar nos nossos sonhos.
            -Sei lá, Amâncio.
            - Temos que cuidar dos vivos. Principalmente aqueles que fizeram mal para quem a gente amava.
            - Olha como é cara-de-pau. Passou a mão na cabeça da tia Glorinha. Agora vou lá quebrar a cara dela.
            - Vai sim, Judite. Quebra ela!
            - Ei, sua vagabunda! Quem você acha que....
            Essa aí é brava. Tenho que ser rápido. É só empurrar um pouco a porta assim, que a fechadura emperra.
            - Ai meu Deus! Que brigalhada. Olha lá, Amâncio. Estão rolando no chão.
            - É sim, dona Cleuza.
            - Tem alguém preso no banheiro, Amâncio. Deve ser criança, porque tá chorando.
            - Ai meu Deus!Deixa que eu ajudo.
            Como eu havia previsto. O Devair já está lá puxando a irmã e a safada tá procurando a filha.
            - Pronto, menina! Não precisa chorar.
            - Eu quero a minha mãe.
            - Vamos que eu levo você.
            Lá vem ela. Muito boa!
            - O que aconteceu filhinha? Oi Amâncio.
            Oi gostosa.
            - Oi Gracinha. Ela ficou presa no banheiro. Foi só isso.
            - Ai Amâncio, muito obrigada. Nem sei o que posso fazer pra retribuir seu favor.
            - Eu sei.
           

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